GUINÉ 1965-1969
Acabado de chegar de uma comissão em Macau e eis que o director do Serviço de Pessoal da Marinha me mandou apresentar para me comunicar que me preparasse para ir para a Guiné. “ Eu para a Guiné, depois de quatro anos em Macau?” “ Eu Licho-o, eu licho-o” Dizia o “Jarocas “ de braços levantados, naquele seu ar de sem jeito nenhum!
“Você tem de ir substituir o engenheiro do Pedro Nunes na Guiné pois ele teve de regressar de urgência porque partiu um braço num acidente”. “Mas eu vim de uma comissão de Macau e não me parece justo ir já para fora!”. “Eu Licho-o, porque você está inscrito na Missão Hidrográfica da Guiné e compete-lhe a si ir”.
“Espere”, disse eu, recordando-me que fora o Comandante Gameiro que me inscrevera, e, sendo assim, aceitei a missão de boa vontade.
E lá fui parar ao Pedro Nunes logo que ele regressou da Guiné com um Eng. de empréstimo.
Na guarnição encontrei vários camaradas com que já servira noutros navios, e alguns do meu tempo da Escola Naval.
A sua silhueta não era muito elegante, mas tinha muito boas características para navio hidrográfico, ainda que mantivesse na poupa do convés superior uma peça de artilharia de 120 mms, além de duas antiaéreas Hoerlickon de 40 mms nas asas da ponte. A Peça de vante há muito fora removida.
A balaustrada do convés inferior corria até meio navio, permitindo que o pessoal se deslocasse naquela área com segurança e onde o mar mesmo em ocasiões de muito mau tempo poucas vezes entrava. O convés de madeira absorvia um pouco o calor do sol tropical, minorando, até certo ponto, a incomodidade da vida a bordo. Mesmo assim sei que para dormir tinha de apontar a ventoinha e o siroco para o beliche e acordava com a sensação de que estava numa piscina, de suor já se vê.
A vida a bordo de qualquer navio é normalmente dura, mas a bordo de um navio hidrográfico é mesmo muito dura, mas extraordinariamente gratificante.
A guarnição era constituída pelo Comandante, pelo oficial imediato, por um oficial engenheiro, o autor deste apontamento e por mais cinco oficiais subalternos, por sargentos e praças brancos e ainda uns 30 ou quarenta indígenas a quem eram distribuídas fardas de marinheiro para se enquadrarem na guarnição, mas que como contratados não tinham qualquer vínculo à Marinha. Era uma situação muito especial. Mais tarde juntaram-se à guarnição um cão, o Jacumai, (cão em Majaco) e um pequeno chimpanzé, o Zezinho, que viria a ficar celebre, tantas foram as peripécias vividas com o símio. Um Ornitólogo do Porto que um dia embarcou para estudar as cagarras das Ilhas Selvagens passou a papel muitas das traquinices do nosso Zezinho, que viria a acabar numa quinta de Palmela.
A preparação dos trabalhos no terreno era feita muito metodicamente e com todo o cuidado, pois não era admissível voltar à Base, em Bissau, se faltasse algo. Em Bissau a Missão Geo-hidrográfica da Guiné possuía uns armazéns onde era guardado o material de uns anos para os outros, enquanto o navio vinha à metrópole docar e fazer algumas reparações no Arsenal do Alfeite.
Das coisas mais importantes e difíceis de preparar era o material necessário para montar as torres de observação geodésica, que serviriam também de suporte de antena para as estações do Raidist. Sistema electrónico de posicionamento rigoroso, que iria permitir identificar os pontos de sondagem e transmiti-los para a prancheta de trabalho.
Depois de embarcadas e arrumadas no castelo do navio todas as quarteladas de cantoneira das torres devidamente identificadas, e embarcados todos os mantimentos e racionada a água, lá zarpava o navio para junto da área a hidrógrafar. Por vezes o fundeadouro possível para o navio distava umas boas milhas da área a sondar mas, o levantamento hidrográfico daquelas paragens ainda se encontrava muito atrasado e tendo em conta que a guerra estava em curso, era importante fazerem-se levantamentos estratégicos para que as vedetas combatentes pudessem navegar com segurança no labirinto dos rios e estuários da Guiné.
Falando em rios e estuários da Guiné não posso deixar de lembrar o que era a aproximação à entrada do Rio Geba. Recordando isto, penso em como poderiam ter os nossos navegadores demandado tais paragens sem ficarem encalhados naquelas águas amarelentas que entram muitas milhas mar adentro. A plataforma continental espalha-se bastante para o largo e ao sul da entrada do Geba existe uma extensão enorme muito baixa e cheia de escolhos que vai até à Barra Sul.
A primeira vez que subi o Rio Geba foi em 1954, foi na viagem de Guarda Marinha a bordo do emblemático Aviso Gonçalves Zarco, que eu deixaria para a sucata em Lisboa, após de 45 dias de viagem que ansiosa e felizmentesingrámos entre Macau e Llisboa, em 1964.
Normalmente para alcançar a Guiné vem-se de Cabo Verde onde é obrigação passar antes de rumar à costa africana.
Hoje a sonda constitui uma boa ajuda para fazer a aproximação e se o tempo não estiver mau a estima e o ultimo ponto astronómico quase faz o resto. Antigamente o melhor amigo dos navegadores nestas aproximações a terra era o fio-de-prumo para sondar. No entanto, e apesar da ajuda do Radar, não são poucos os olhos que prescutam o horizonte para avistar a bóia de espera fundeada na foz do rio Geba. Depois são mais umas horas até ao porto fluvial de Bissau, passando pelo farol do Caió.
A montagem das torres, em locais devidamente assinalados nas cartas e que anteriormente já tinham servido para levantamentos geodésicos, eram um autentico espectáculo de circo, uma demonstração inequivoca da agilidade do pessoal.
As torres duplas, uma por dentro da outra, eram eregidas cantoneira a cantoneira, aparafusadas umas às outras até atingirem a sua altura máxima que andava salvo erro pelos 40 metros. A agilidade do pessoal que as levantava é digno de menção. Pareciam autênticos macacos dependurados na estrutura de chave de bocas nas mãos e o saco dos parafusos atados à cintura.
Muito perto da torre era escolhido o local para instalação do acampamento, que era abastecido com todo o material e mantimentos para cerca de um mês. O gerador eléctrico não era um luxo para uso do pessoal, mas alimentava um transmissor cujo sinal era recebido por uma estação a bordo.
Os sinais cruzados de três estações devidamente localizadas permitia, com um rigor muito elevado, determinar a posição da embarcação de sondagem, sendo esta posição controlada por sistema montado a bordo do navio. Este é o sistema Raidist.
Muitas vezes o desembarque de material constituía uma operação bastante delicada, muito particularmente quando o mar estava agitado. Recordo-me especialmente do desembarque da estação que no meu primeiro ano foi montada no Norte da Ilha da Caravela a Sul da barra do Rio Geba.
É já mar aberto e estava uma ondulação que levantava e baixava alguns dois metros as embarcações que recebiam o material de bordo, o que tornava muito difícil a manobra de carga das embarcações, escaleres do navio que eram depois rebocados pelos gasolinas para a praia, num ponto o mais próximo possível do local de instalação da estação. Se bem me lembro a guarnição destes pontos era de três homens. Um telegrafista, um fogueiro e um auxiliar indígena. Ali iriam permanecer todo o tempo que durasse aquela campanha. Certa vez os trabalhos decorreram durante 45 dias sem interrupção. Foi lá para os lados da Ilha de João Vieira! Tivemos de ser reabastecidos de géneros e água por uma barcaça de desembarque, LDG e por uma vedeta LFG. Numa das estações o pessoal permaneceu a bordo de uma embarcação amarrada a um palanque contraindo com tubos de ferro galvanizado, que suportava a estação Raidist e que na maré baixa ficava em seco e na maré-alta quase dentro de água. Não é de ignorar a grande amplitude das marés da Guiné, que na maré baixa aumenta a sua superfície em mais de um terço da sua superfície.
Ainda a propósito de desembarques de material lembro o desembarque para uma torre numa praia do sul da Ilha de Orango Sul. A praia de mar aberto, estava com uma rebentação pequena, mas que não permitia varar os escaleres na praia e assim, enquanto quatro homens com a água até ao pescoço tentavam manter as embarcações aproadas ao mar, o pessoal colocava umas poucas de cantoneiras ao ombro, um à frente e outro a trás e dirigiam-se para a praia. Um dos homens era o “Meio Quilo”, assim conhecido pelo seu pequeno porte, e quando vinha uma vaga era submergido por ela sem no entanto deixar de gritar antes de ser atingido “atenchão ... ! “.
Só por sorte não fiquei sem os dedos da mão quando uma dessas cantoneiras deslizou por cima de uma das minhas mãos enquanto agarrava o escaler.
Eram umas praias maravilhosas e devem continuar a ser, mas o acesso a essas paragens deve ser tão difícil como outrora. Nesse mar a umas poucas de milhas para o sul jaziam as carcaças de vários navios que enchurraram naquelas paragens. Da sua carga haviam muitos toros de madeira que foram parar às praias do sul do Ilhéu de Cute, a norte da ilha de Uno, onde permaneciam há já muitos anos, e possivelmente ainda lá se encontram.
A perigosidade destes desembarques era aumentada pela existência de muitos tubarões naquelas águas, mas também foi o sítio onde encontrei mais golfinhos, que acompanhavam a embarcação durante várias horas.
A propósito de tubarões tenho duas experiências pouco agradáveis. Uma foi durante um desembarque no Norte da Ilha de Orango. Quando saltava do bote de borracha, para dentro de água, apareceu um tubarão a um metro de nós que tive de afastar a tiro de carabina. A segunda foi na Foz do Rio Cacine, quando me dirigia para um banco onde se estava a montar uma marca para suporte de um reflector de radar, com o bote cheio de pessoal. As águas estavam um pouco agitadas e de repente apareceu uma enorme barbatana de tubarão a poucos metros de distância, o que naquelas paragens não era de estranhar, mas comecei a rezar quando olhando para o painel de popa do Zebro (bote de borracha) vi que este se estava a descolar dos flutuadores. Fiquei muito caladinho, desacelerei o motor de poupa de 50 cavalos de que não gostava nada, pois sempre gostei mais de andar com os Mercury de 20 cavalos, e lá fui até ao baixo, que passadas poucas horas seria totalmente engolido pela maré
A montagem destas marcas de navegação era um trabalho arriscado que tinha de ser feito aproveitando o intervalo das marés. Era um trabalho feito contra relógio!
A Missão instalou várias marcas deste género, que permitia a navegação por Radar naquelas canais estreitos por entre baixios traiçoeiros. Nessa área existem, assinalados, na carta hidrográfica que foi produzida com o nosso trabalho, vários baixios a quem foram dados nomes de oficiais do navio, alguns deles só com as iniciais como é o caso do baixio JAL, ou pelas alcunhas, baixo do Bill, ou ainda com o nome do cão, Jacomai.
As marcas eram constituídas por varas de 6 metros de tubo galvanizado de 12 polegadas de dia metro, sendo uma delas quase totalmente enterrada na areia com uma maquineta constituída por quatro braços de uma braçadeira e que eram movimentados pelo pessoal enquanto uma vara no interior do tubo descarregava a água comprimida por uma bomba (P60) do serviço de incêndios, que abria o caminho para o tubo ir descendo na areia.
Na foz do Cacine eram vulgares os aparecimentos de tubarões. Costumávamos pescá-los por desporto. Do maior que pescámos, ainda possuo a dentadura.
O bicho era de tal maneira grande que uma vez içado, pela cauda no turco de uma das embarcações, já esta estava a tocar no turco e ainda a cabeça se encontrava dentro de água. Era uma fêmea que deu à luz, quando já se encontrava no convés inferior para onde tinha sido içada.
Os indígenas devolviam ao mar os tubarõezitos pequeninos porque eram “mininos”.
O trabalho da Hidrografia é extraordinariamente compensador sob o aspecto profissional e satisfação pessoal. Começava-se por ter uma prancheta de papel colada a uma chapa de alumínio para evitar deformações No principio esta prancheta está completamente em branco, mas todos os dias são lançadas sobre ela centenas de sondas posicionadas em pontos assinalados, picando com uma agulha de coser.
Elegida a área a sondar, dispúnhamos duas formas de posicionamento de acordo com o local a trabalhar. Quando se tratava de áreas junto à costa utilizávamos normalmente a sondagem com posicionamento por sextante. Para isso era necessário determinar na carta e no terreno pontos conspícuos devidamente determinados geodésicamente, o que no caso das costas da Guiné era uma operação quase impossível, de tal forma a sua silhueta era regular. Lá se conseguia aqui e ali um poilão, mas muitas vezes havia que construir pequenos sinais e usar também as torres do Raidist.
Quando se tratava de áreas mais abertas então recorria-se ao posicionamento por Radist
Consumi umas boas horas da minha vida a sondar a sextante. Era eu e o Comandante que normalmente fazíamos esta espécie de trabalho mas evidentemente sem exclusividade. Com a intercepção de dois ângulos com um ponto comum obtínhamos a posição da sonda o que era devidamente assinalado na prancheta de trabalho. Era quase lusco-fusco e já mal se viam os pontos quando havia de desistir para continuar no dia seguinte bem cedinho.
Para almoço levávamos três ou quatro sandes um termo com chá e uma ou duas cervejas. Para vamos para trincar uma sandes, ou aproveitávamos uma mudança de local para nos alimentarmos. E que dizer do clima? Muito, muito quente e extremamente húmido. Uns calções e uma camisa de caqui um boné com uma aba rígida para a nuca e uma mole que nos permitia fazer as observações sem encandeamento. À chegada a bordo, um banho de água salgada com sabão especial, um balde de água doce para enxaguar. Jantar e ir para a sala de desenho analisar o rodo da sonda até o cansaço aconselhar a atirar o corpo para cima do beliche, porque à alvorada teria de estar pronto para outro dia igual. Apesar de se estar a trabalhar em águas interiores raras não eram as vezes em que havia de suportar balanço durante todo o dia nas pequenas embarcações de sondagem.
Relembro uma vez ao largo, entre a Ilha da Caravela e os Ilhéus de Unhocomo e Unhomomozinho, com o navio fundeado a norte de Unhocomosinho, andar o dia inteiro a sondar, a Raidist, debaixo de uma nortada que levantou uma surriada dos demónios.
A embarcação seria o Buba ou o Mansoa, não sei, mas como eram gémeas quase só se via a diferença quando se olhava para a cara do Patrão, O Agostinho ou o. Joãozinho Peciche.
A dada altura afastei-me tanto do navio que o perdi no horizonte e o pior é que o Raidist se avariou e quando a bordo me julgavam perto eu ia-me afastando cada vez mais para noroeste. Bem que clamava para o navio que não podia ser, mas continuaram a mandar-me seguir numa dada direcção, até que me perguntaram se eu ainda via o navio a que eu respondi que não mas que sabia o azimute da sua localização. Fiz meia volta e demorei bem mais de hora e meia a regressar. Quando cheguei o meu casaco encharcado, conseguia menter-se em pé. Eu tinha levado uma grande sova. Quando digo eu, não é porque me queira esquecer do resto do pessoal que guarnecia a embarcação. Dois patrões que se iam revezando, um proeiro, todos indígenas e um telegrafista que operava a sonda. As comunicações eram asseguradas por uns Walki Talkies de cuja marca já não me recordo e que tinham um alcance de umas dez ou quinze milhas, mas às vezes falhavam.
A prancheta a bordo era todos os dias cheia com a informação que se recolhia nos registos do posicionamento por Raidist e informação tratada do rolo da sondagem. Apesar de não ser o trabalho duro da sondagem exigia um esforço de concentração e havia sempre um trabalho de verificação por outro ou outros oficiais, pois que o rigor era lema daquela Missão.
Os desembarques nas ilhas eram muitas vezes necessários. Um dos locais mais simpáticos era a povoação de Anhonhe, na Ilha de Uno, no Sul do arquipélago dos Bijagós. O administrador era muito solícito. Vivia para ali só com a mulher guardando a campa de um filho que lhes tinha morrido naquelas paragens, onde a única ajuda médica seria a do feiticeiro.
As gentes eram simpáticas e de cada vez que o Pedro Nunes fundeava no canal entre aquela ilha e a de Orango, era dia de festa (ronco) na localidade. As bajudas, as teenagers lá do sítio, vestiam-se de lama branca da cintura para cima pois envergavam somente uma saia feita de palha. E algumas mais evoluídas um soutien.
Perto da casa do Administrador existia um campo de capim razo, mantido assim pelas vacas que por ali pastavam e que servia para os pequenos monomotores aí aterrarem e levantarem voo. Faziam uma passagem muito baixa para afastar as vacas e depois atiravam-se para aquela pista que faria a inveja de qualquer aeroporto moderno! Saí daí numa avioneta para ir para Lisboa frequentar o Curso Naval de Guerra!
As idas do navio a essas paragens eram muitas das vezes exploratória. Singrávamos águas onde nunca teria ido nenhum navio daquele porte. A navegação entre as ilhas era extremamente difícil e muitas das vezes íamos usando as cartas que íamos desenhando. Os canais mais fundos que serpenteavam entre os bancos de lodo e areia eram muito estreitos e caprichosos. A única forma de navegar era com suporte no radar e na sonda. Apanhámos muitos sustos, um deles no canal sinuoso e muito estreito entre a ilha de Bubaque e a de Orango.
Fomos à Ilha de Uno para aí estabelecer mais um acampamento com uma estação Raidist e o desembarque fez-se numa pequena praia a leste da povoação. Uma das dificuldades era o desembarque dos geradores que nessa altura já seriam uns monocilindros Lister, que pesavam imenso. Da praia para terra firme havia uma pequena ladeira um pouco escorregadia e não sei como aquilo foi arranjado, mas de repente ficou um indígena sozinho com o motor às costas. Já não me recordo do nome dele, mas era um verdadeiro touro. Só dizia ai. Ai. Ai, mas não arriou. Nesse mesmo desembarque aconteceu uma peripécia muito engraçada. O marinheiro telegrafista que ia ficar naquele acampamento era o Forno, que era um pouco gago, mas mais gago ficou, quando sentiu algo a bater-lhe nos calcanhares e começou a gritar coooo..bra, coo….bra, coo….bra.! Verificou-se que tinha sido o tomadouro da maca, explique-se que a cama dos marinheiros era uma espécie de lona de descanso, com um colchão, à semelhança das redes de descanso, e que depois de enrolada para arrumar durante o dia era apertada com os cabos que serviriam para a suspender. Ora um desses cabos desenrolou-se e começou a bater-lhe nos pés e quanto mais corria mais o cabo saltava, daí a sua aflição tanto mais que era sabido que todas aquelas ilhas estavam infestadas de cobras. Numa estadia, mais tarde, houve um marinheiro mordido por uma cobra altamente venenosa. A bordo não tínhamos médico, mas os enfermeiros que para ali iam era normalmente antigos e muito bons profissionais, com estadias prolongadas nos pós operatórios do Hospital de Marinha. E assim o enfermeiro fez uma incisão na perna mordida e começou a chupar e a cuspir o veneno da ferida, sentindo-se a certa altura também ele afectado. No fim tudo correu bem. A Missão do Sono onde existiam os maiores conhecedores de cobras da Guiné, disseram mais tarde que a cobra deveria ser pequena ou teria usado veneno há pouca tempo, caso contrário teria sido difícil salvar o indivíduo.
Uma outra peripécia, e julgo que também estávamos junto da ilha de Uno, foi a de um marinheiro que apresentou queixas abdominais. O enfermeiro observou-o e diagnosticou uma apendicite aguda aconselhando o regresso urgente a Bissau para ir para o Hospital. Levanta ferro, deixa tudo para trás e passadas não sei quantas horas estava o doente a ser observado no Hospital, mas o médico dizia que não era apendicite e que deveria esperar-se algum tempo para ver a evolução, no entanto o nosso enfermeiro teimava que o doente deveria ser operado de imediato. E assim se fez, concluindo-se que o enfermeiro tinha razão e a operação era mesmo muito urgente.
Enquanto algum do pessoal preparava, material para desembarcar mais uma estação o outro aproveitava para tentar pescar Alguns dos fundeadouros permitiam apanhar muitas Sinapas, uma espécie parecida com as bicas que aparecem por vezes por cá à venda, mas só quando calhava apanhar fundos de areia e rocha. Nos fundos de lodo só apanhávamos Bagres que são uns peixes gato de fundo que por vezes atingem quase um metro. As melhores pescarias faziam-se ao corrico com linha de 1 milímetro ou mais, segura na mão, mas de luva de cabedal calçada. Com o bote de borracha e em locais que já havíamos identificado fazíamos passagens junto a rochas submersas e se a sorte estava do nosso lado apanhávamos peixe para toda a guarnição. Eram Charéus e grandes Bicas. Apanhei umas duas barracudas, mas não eram muito frequentes naquelas águas.
O que não pode deixar de ser referido eram as verdadeiras orgias de ostras.
Quando fundeados entre os ilhéus, enquanto uns trabalhavam, outros iam apanhar ostras, que é como quem diz, cortar uns ramos ao mangal onde as ostras haviam crescido. Eram aos milhares e comiam-se de várias formas. Ao natural, em pichepache de ostras que era uma espécie de sopa de ostras com muito limão da Guiné, tubo bem regado com umas cervejas de importação. Fazíamos refeições completas de ostras.
Em Bissau havia um pequeno restaurante, que na altura era o melhor da terra, que tinha como especialidade as ostras e o camarão apanhados lá para os lados do Biombo. Era o Restaurante do Vara Longa. Era ele, a mulher e a filha, rapariga interessante comparada a fruta madura à espera que a colhessem. Gente simpática que regressados ao continente se estabeleceram lá para os lados de Salvaterra de Magos. Nunca mais os vi.
As mesas cá fora, enchiam-se de gente a comer travessas e travessas cheias de ostras e as cascas eram atiradas para debaixo da mesa, onde formavam enormes montes.
Para além destes é de referir o Zé da Amura e o Solar dos Dez
Mas voltando às pescarias.
Um dia corricava ao sul da Ilha de Calhambaque, com o Comandante Andrade e Silva num bote de plástico cujo fundo era extraordinariamente escorregadio e a certa altura, peguei uma barracuda mas, a movimentação dentro do bote, para não ser apanhado pelos seus dentes, provocou uma escorregadela do Andrade e Silva e vi-me de repente com a barracuda numa mão enquanto com a outra segurava o camarada para não ir parar à água. Nessa altura nenhum de nós imaginava que ele viria a ser Chefe do Estado-maior da Armada uns bons anos depois.
Após algum tempo de duro trabalho de sondagens, havia que ir a Bissau, para reabastecer e deixar trabalho já executado.
Eu era normalmente quem desenhava u7m esboço das cartas de navegação que iam resultando do nosso trabalho e para tal construímos uma prensa em madeira para que, com o sol e amoníaco, conseguíssemos copias que eram entregues ao Comando Naval em Bissau, para poderem ser utilizadas se necessário pelas vedetas combatentes. Não nos esqueçamos que estavamos em guerra!
O regresso a Bissau era sempre rodeado de várias acções, sendo uma delas o acompanhamento das embarcações de sondagem que iriam fazer toda a viagem pelos seus próprios meios. Em princípio a viagem era planeada a contar com as marés, pois que a corrente vazante no rio Geba é extremamente forte e para as embarcações de sondagem era uma distância considerável a cobrir.
O porto de Bissau tinha um movimento relativamente pequeno, a não ser quando chegavam os navios mercantes que asseguravam a logística de abastecimento das tropas portuguesas que a todo o custo tentavam manter a soberania nacional naquele território. Não estou a contar com o movimento das lanchas de marinha que tinham no porto de Bissau a sua base.
O cais era bastante bom mas era sempre aborrecido permanecer aí atracado, porque a amplitude das marés era de meia dúzia de metros.
Por este motivo ficávamos muitas vezes fundeados ao largo, pendentes das nossas embarcações para vir a terra.
Bissau era uma cidadezinha muito simpática. Uma avenida central no meio da qual se encontrava a sé imponente, e ao cimo uma rotunda monumental, mas que em nada se compara com as rotundas que podemos encontrar hoje espalhadas pelas nossa estradas, algumas delas com dimensões que fazem empalidecer de inveja muitas das maiores da Europa, com monumento no centro, a Praça da Bajuda, junto à qual se encontrava o Palácio do governo.
Para um e outro lado desta avenida corriam duas ruas paralelas, com área residencial e algumas lojas.
A avenida marginal, perpendicular à avenida, desenrolava-se ao longo da margem do rio, desde o quartel dos Fuzileiros até ao Comando Naval tendo a fortaleza da Amura como a edificação mais antiga e importante. Paralelamente e mais para norte corria a rua do comercio, onde se encontravam as lojas de tentações para os militares cediados em Bissau. Eram as máquinas fotográficas, os rádios, os gravadores, etc., etc. Era a loja do Taufiksad, a do Pintosinho e outras. Ao fundo da Avenida destacava-se pelo seu tamanho a Casa Gouveia, que estava ligada a outros negócios maiores como explorações de amendoim e outras. Fui mais tarde, em 1977 encontrar estas casas todas vazias. Na Casa Gouveia, destacava-se por ridículo, no meio da casa um grande monte de rolos de papel higiénico a contrastar com as prateleiras literalmente vazias.
Na avenida marginal, como a recordar a epopeia marítima portuguesa e os descobrimentos, hirto na sua indiferença de pedra, a estátua do Gançalves Zarco.
Uma das curiosidades que se encontram naquelas ruas são os alfaiates que pedalam as suas velhas máquinas de costura Singer, confeccionando os trajes de panos brancos e coloridos para todos os gostos.
As ruas fervilham de movimentos das gentes de todas as raças e credos, umas demasiado vestidas, outras nem tanto.
Na rua mais a oeste encontrava-se o mercado, que era dos pontos mais interessantes, a não perder, pela variedade dos produtos aí transaccionados, e pelo colorido das roupagens das gentes que se movimentavam naquele espaço. Era também a rua dos restaurantes que mais frequentávamos, para saborear um boa cachupa ou acompanhar umas cervejas com os deliciosos camarões do Biombo ou as esplêndidas ostras do mangal. Nunca mais consegui comer ostras com tal qualidade.
Bissau era também uma espécie de metrópole onde se exibiam todas as raças, e que são muitas, da Guiné e regiões fronteiriças. Os Fulas com as suas vestes compridas e as suas súmbias enfiadas na cabeça distinguiam-se bem entre todos, mas abundavam os Papeis, os Manjacos, os Balantas os Mandingas e mesmo alguns Bijagós.
Quem se aventurasse para a estrada que dava acesso ao aeroporto, Aeroporto de Bisasalanca poderia visitar o bairro indígena do Alto do Crim, o que no entanto não era muito aconselhável.
Como se sabe nem sempre Bissau foi a capital da Guiné, pois durante muitos anos Bolama que fica numa ilha mais a sul e com o mesmo nome, foi a capital. Só lá fomos uma vez, mas eu não cheguei a desembarcar. Pareceu-me uma terra que parara no tempo, uma cidade fantasma.
Em terra firme pouco conheci da Guiné pois limitei-me a ir a Bafatá, que é a terra dos ourives, ou melhor dos artistas que trabalhavam a prata e a Mansoa, mais para o norte, onde já estivera quando da minha viagem de guarda – marinha, e ainda viria a voltar mais uma vez em 1977
O trânsito naquelas estradas, se assim se podem chamar, era muito penoso e para fazer meia dúzia de quilómetros demorávamos horas. O risco de sermos atacados pelos chamados turras estava sempre iminente.
Todo o meu conhecimento se resume às ilhas do Arquipélago dos Bijagós e aí sim julgo que desembarquei em todas elas, mas numa não passámos da praia. Foi no Ilhéu de Cute. Mal saímos da praia e começamos a internarmo-nos no mato encontrámos duas mambas verdes, que são das cobras mais mortíferas da região, matámo-las a tiro, mas desistimos da nossa expedição por a julgarmos demasiado arriscada e porque não ser importante. A família daquelas cobras ainda deve manter hoje a guarda daquela floresta inexpugnável.
A estadia em Bissau era sempre muito agradável, mas a mais curta possível. Suficiente para reabastecimento e alguma reparação julgada necessária, pois em campanha só se acudia a urgências, como daquela vez que uma das embarcações ficou com o veio do hélice empenado e foi necessário proceder à sua substituição. Içámos a embarcação de sondagem pela popa no turco da embarcação do navio, e que não era suficientemente forte para poder içar toda a embarcação a reparar e com a sua proa dentro de água, engendrámos um andaime que permitiu sacar o veio e trocá-lo por outro.
Mesmo assim, estas curtas estadias permitiam-nos manter uma vida social muito activa.
Porque a bordo do Pedro Nunes se comia excepcionalmente bem, convidávamos muitos camaradas que ou viviam a bordo das lanchas que mantinham a resistência aos combatentes guineenses que normalmente chamávamos de terroristas, termo que de forma alguma, não deveria aplicar-se a quem lutava pela libertação da sua terra, ou a camaradas que viviam com as famílias em terra em condições relativamente precárias, principalmente no tocante à alimentação. A praça era farta, mas de produtos indígenas. Peixe havia pouco e a carne era de qualidade duvidosa.
Um jantar a bordo do Pedro Nunes que tinha por comandante um belíssimo “groumé” era coisa a não perder, tanto mais que sempre se arranjava um peixe fresco ou um bacalhau, vindo de Lisboa na última viagem da Rita Maria à Guiné. Além disso o Zèzinho Macaco também era uma atracção. Não me esqueço do Governador Arnaldo Schultz a brincar deliciado com o símio.
Era um ambiente propício a fazer-se amizades algumas que ainda hoje perduram como é o caso da minha com o Comandante Prudêncio Fernandes, oficial que viria a ter, já eu me tinha vindo embora, um aparatoso acidente de viação, quando se dirigia a uma pequena exploração agrícola que mantinha para satisfazer as exigências das messes da Marinha. Ficou marcado para toda a vida. Nem só em combate se sofre, pois que os que estão na retaguarda, no apoio logístico, também têm a sua quota- parte. Ainda hoje nos encontramos todas as semanas e alimentamos uma amizade sadia.
O comandante do navio, que infelizmente já há muito não se encontra entre nós, João Paulo Bustorf Guerra, era um homem de grande valor em toda a acepção da palavra. Apesar de não ser Engenheiro Hidrógrafo, (também não pretendia ser 1º Ministro!) tinha um passado ligado à hidrografia e à geodesia que o tornaram um profissional competente admirado por todos os que com ele trabalharam. As suas actividades em levantamentos geodésicos no norte de Moçambique e região do Niassa, deixaram testemunhos para todo o sempre. De uma grandeza de carácter notável, para além das suas esplêndidas qualidades de oficial da marinha, como marinheiro afoito para o mar, e bom manobrador, era elegante nas suas atitudes, e o seu comando um prazer para todos os seus subordinados, conseguindo tornar a vida difícil inerente a uma missão tão árdua e importante, num tempo em que todos se sentiam profissionalmente e socialmente realizados. Não só era o comandante do navio como realizava todas as tarefas de hidrografia, dando um exemplo e incentivo a toda a guarnição. Viria a regressar a Lisboa antes de finda a Comissão, quando foi nomeado comandante da Escola de Fuzileiros, cargo que viria a desempenhar com notabilidade. Regressámos a Lisboa nesse ano no fim da Campanha sem comandante, mas como o Eng. (eu) era o oficial mais antigo estabeleceu-se um acordo de cavalheiros e o Bill tomou as rédeas de tudo o que era comando e navegação do barco.
As estadias fora de Bissau duravam várias semanas e trabalhava-se muitas horas por dia (15, 16, 17 e às vezes mais) e numa das ocasiões foram só 45 dias sem qualquer folga. Mas o trabalho via-se e o H.I. chegou a pedir-nos que fizéssemos menos por comissão porque não conseguiam digerir toda a informação que reuníamos. No entanto os relatórios do comando eram puramente circunstanciais, e sem observações supérfluas que poderiam induzir a colheita de louros, como conhecíamos algumas. Socialmente o Comandante era o que se costuma dizer um Senhor. Bon vivant , tendo por lema “Trabalho é trabalho e conhac é conhac “. Tinha muitos bons amigos e recordo as tardes no velho English Bar , no Belcanto e noutros bares elegantes daquele tempo de Lisboa.
De volta ao trabalho propriamente dito lá descíamos o Geba, em demanda de fundeadouro o mais próximo possível da área a sondar.
Num dos anos fomos fundear à foz do rio Cumbijã a sul da restinga de Melo. O rio era muito utilizado pelas vedetas pequenas da Marinha e a entrada estava mal definida nas cartas. Andámos um par de dias a sondar a área, mas a certa altura houve necessidade de ir cortar a linha do praia- mar na praia da ilha de Como. Como era uma região com bastante actividade de combatentes guineenses tiveram que ser tomadas todas as precauções para não sermos apanhados descalços e assim foi montada na proa da embarcação de sondagem uma metralhadora, não sei quantos, mas que se necessário faria muita moça antes de ser calada.
Quem andou a sondar essa área foi o Comandante e o ten. Martinha e aconteceu que um dia iam morrendo com um embaraço gástrico. Tiveram que interromper as sondagens por se estarem a sentir muito mal. Vieram para bordo e foram postos a soro. Todos tínhamos comido o mesmo e a intoxicação alimentar foi posta de parte, no entanto viemos a saber que tinham sido os únicos a beber um gin tónico antes do almoço e neste comeram-se ostras. Viemos a saber mais tarde que esta combinação era muito perigosa. Desta safaram-se e aprendemos toda uma lição.
Um dia apareceu-nos uma das lanchas pequenas que vinham do rio Cumbijã com um crocodilo que mal cabia no castelo da proa do navio. Mas que grande bicho!. Foi apanhado a tiro, quando estava num banco de areia a dormir ao sol, é uma das razões porque é perigoso apanhar-se banhos de Sol! Uma noite nesse fundeadouro, estávamos a jantar, quando aparece o cabo de quarto a comunicar de que estávamos a ser alvejados por rajadas de uma lancha. O comandante deu ordem de ocultação de luzes e lá fomos todos a correr para os nossos postos. Apesar de ser um navio que não andava em missões de guerra, quando alcançámos o convés verificámos que a ocultação de luzes estava perfeita. Logo de seguida veio a verificar-se que tinha sido um erro de avaliação de uma das nossas vedetas, vinda Foz do Rio Cacine que nos tomou por um célebre navio fantasma, do inimigo, que se lhes andava a escapulir há muito tempo.
Uma das vedetas que frequentava aquelas águas era a Belatrix comandada por um oficial da Reserva Naval, com quem resolvemos brincar. Convencemo-lo a que seria necessário pintar a ponte do seu navio de branco para nos servir de marca de referência e que lhe iríamos mandar a tinta necessária para o efeito. Para tal foi trocada correspondência por mensagem. Depois de o termos convencido dessa necessidade, foi enviado pela embarcação de bordo a tinta, que por sinal eram dois garrafões de belíssimo vinho branco da região de Coruche e que recebíamos directamente do produtor.
Este episódio é contado pelo próprio ex comandante de vedeta, Dr. Manuel Torres, numa revista da Reserva Naval.
Não me recordo se foi nesta ocasião ou noutra que embarcámos uns fuzileiros para nos darem cobertura às nossas actividades pois como já referi não era chão em que se facilitasse e havia que se estar sempre em alerta. Utilizavam os seus botes de borracha Zebro equipados com motores Mercury de 50 cavalos, mas em comparação connosco eram extremamente graneleiros e descuidados com o material e assim passei não sei quantos dias a desmontar, limpar e a remontar os motores que chegavam a bordo cheios de areia da praia. Era eu de um lado e o Sarg. Moitão do outro. O pessoal da máquina era extraordinário e nunca tivemos grandes problemas com a instalação de máquinas do navio na Guiné. Tivemos sim, nas águas de Cabo Verde, mas a isso talvez me venha a referir um dia.
As estadias fora de Lisboa, chamadas de Comissões da Missão incluíam parte do tempo passado em Cabo Verde para complementar os trabalhos hidrográficos do Navio Almeida Carvalho. Um dia se a disposição me permitir ainda deixarei a minha memória vaguear graficamente por esses tempos.
A propósito de fuzileiros e de lanchas, não posso deixar de referir os elementos das Forças Armadas que combateram para que aquela parcela de Africa não se separasse de Portugal.
Existem muitos relatos de missões de guerra e de situações de aperto das nossas gentes e das que sendo da terra se juntaram a nós para combater os chamados turras. Algumas das descrições que agora vão aparecendo não são histórias, mas testemunhos do sacrifício que lhes foi imposto, por uma politica desastrosa dos anos 60/70. E por falar em politica. Quando é que ela deixa de ser desastrosa? Recordo um “brain storm” num curso superior naval de guerra em que se perguntou qual seria o caminho a seguir, para acabar com a Guerra-fria e um dos presentes adiantou “acabar com os políticos”. Não digo quem foi, mas eu sei. E ainda não mudou de ideias!
A chegada a Lisboa é sempre um acontecimento a marcar a vida de um marinheiro. Quando o vulto da Serra de Sintra se desenha no horizonte o peito enche-se de ar e as saudades começam a escorrer dos corpos, começando a embotar as recordações da Comissão cumprida, do mau tempo apanhado pelo caminho, das saudades da família para os que a atinham, e a sentir que o ar era familiar. Estávamos a chegar a casa! Agora era só demanda45r a barra sul, deixar o farol do Bugio por estibordo e o vetusto forte de S. Julião por bombordo e apontar à ponta de Cacilhas.
Não sei precisar em qual das chegadas tivemos o prazer de ver a ultima secção do tabuleiro da ponte Salazar a ser içada para o seu lugar.
Tenho imensa pena por não ter uma memória que me permitisse partilhar com outros as minhas andanças de marinheiro. Do mau tempo no mar ainda me restam alguns testemunhos fotográficos.
Nunca fui de rezas, mas muitas vezes sozinho na ponte, de quarto, prescutando o horizonte, tentando avistar alguma luz, quando o navio subia na crista da vaga em mar revolto, com o vento a cortar a respiração, compreendi os que nessas ocasiões se entregam a quantos santos conhecem. Nessas alturas tenta-se visionar a vida a bordo das caravelas. Não nos lembramos que quão pequeno é o barco em que estamos. Não chegava às mil toneladas.
Quinze anos no mar e não sei o que é um paquete! Não, não me estou a referir, naturalmente aos paquetes da última geração, mas mesmo a um Funchal ou a um Príncipe Perfeito!
Mesmo assim sempre era melhor andar no mar no Pedro Nunes do que a bordo dos dragaminas americanos pequenos com as suas trezentas e tal toneladas de deslocamento. Não é que os navios não aguentassem, mas pobre dos que iam a bordo. “ Navios feitos de pau para homens de pau feito.” Como costumávamos dizer por brincadeira.
JAL
Lx. 07-05-01