segunda-feira, 28 de maio de 2007

GUINÉ 1965-1969




Pois é.
Acabado de chegar de uma comissão em Macau e eis que o director do Serviço de Pessoal da Marinha me mandou apresentar para me comunicar que me preparasse para ir para a Guiné. “ Eu para a Guiné, depois de quatro anos em Macau?” “ Eu Licho-o, eu licho-o” Dizia o “Jarocas “ de braços levantados, naquele seu ar de sem jeito nenhum!
“Você tem de ir substituir o engenheiro do Pedro Nunes na Guiné pois ele teve de regressar de urgência porque partiu um braço num acidente”. “Mas eu vim de uma comissão de Macau e não me parece justo ir já para fora!”. “Eu Licho-o, porque você está inscrito na Missão Hidrográfica da Guiné e compete-lhe a si ir”.
“Espere”, disse eu, recordando-me que fora o Comandante Gameiro que me inscrevera, e, sendo assim, aceitei a missão de boa vontade.

E lá fui parar ao Pedro Nunes logo que ele regressou da Guiné com um Eng. de empréstimo.
Na guarnição encontrei vários camaradas com que já servira noutros navios, e alguns do meu tempo da Escola Naval.



Distribuíram-me um camarote que dava como todos os outros para a Sala de armas do velho aviso de segunda classe, Pedro Nunes; uma verdadeira banheira flutuante, com um aparelho propulsor constituído por dois motores Diesel MAN, de -........ Cavalos cada um, pouco mais do que o motor de um desses pequenos carros que aceleram nas nossas estradas. Foi construído para comissões de vários meses ou anos nas Colónias. Viera há pouco tempo de uma longa comissão no oriente antes de ir parar à Missão Geohidrográfica da Guiné.
A sua silhueta não era muito elegante, mas tinha muito boas características para navio hidrográfico, ainda que mantivesse na poupa do convés superior uma peça de artilharia de 120 mms, além de duas antiaéreas Hoerlickon de 40 mms nas asas da ponte. A Peça de vante há muito fora removida.
A balaustrada do convés inferior corria até meio navio, permitindo que o pessoal se deslocasse naquela área com segurança e onde o mar mesmo em ocasiões de muito mau tempo poucas vezes entrava. O convés de madeira absorvia um pouco o calor do sol tropical, minorando, até certo ponto, a incomodidade da vida a bordo. Mesmo assim sei que para dormir tinha de apontar a ventoinha e o siroco para o beliche e acordava com a sensação de que estava numa piscina, de suor já se vê.

A vida a bordo de qualquer navio é normalmente dura, mas a bordo de um navio hidrográfico é mesmo muito dura, mas extraordinariamente gratificante.

A guarnição era constituída pelo Comandante, pelo oficial imediato, por um oficial engenheiro, o autor deste apontamento e por mais cinco oficiais subalternos, por sargentos e praças brancos e ainda uns 30 ou quarenta indígenas a quem eram distribuídas fardas de marinheiro para se enquadrarem na guarnição, mas que como contratados não tinham qualquer vínculo à Marinha. Era uma situação muito especial. Mais tarde juntaram-se à guarnição um cão, o Jacumai, (cão em Majaco) e um pequeno chimpanzé, o Zezinho, que viria a ficar celebre, tantas foram as peripécias vividas com o símio. Um Ornitólogo do Porto que um dia embarcou para estudar as cagarras das Ilhas Selvagens passou a papel muitas das traquinices do nosso Zezinho, que viria a acabar numa quinta de Palmela.



O pessoal indígena já há muitos anos trabalhava para a Missão. Veio do tempo do Almirante Cristino quando este, jovem tenente, dirigiu a abertura de picadas no mato para acesso aos topógrafos que fizeram o levantamento geográfico do território “Bai num bai na Mandovi por mor de 5 pesos” era a frase que atravessou o tempo e se referia ao contrato de trabalho na Missão no tempo da canhoneira Mandovi, antecessora do N.R.Pedro Nunes naquelas andanças.

A preparação dos trabalhos no terreno era feita muito metodicamente e com todo o cuidado, pois não era admissível voltar à Base, em Bissau, se faltasse algo. Em Bissau a Missão Geo-hidrográfica da Guiné possuía uns armazéns onde era guardado o material de uns anos para os outros, enquanto o navio vinha à metrópole docar e fazer algumas reparações no Arsenal do Alfeite.
Das coisas mais importantes e difíceis de preparar era o material necessário para montar as torres de observação geodésica, que serviriam também de suporte de antena para as estações do Raidist. Sistema electrónico de posicionamento rigoroso, que iria permitir identificar os pontos de sondagem e transmiti-los para a prancheta de trabalho.

Depois de embarcadas e arrumadas no castelo do navio todas as quarteladas de cantoneira das torres devidamente identificadas, e embarcados todos os mantimentos e racionada a água, lá zarpava o navio para junto da área a hidrógrafar. Por vezes o fundeadouro possível para o navio distava umas boas milhas da área a sondar mas, o levantamento hidrográfico daquelas paragens ainda se encontrava muito atrasado e tendo em conta que a guerra estava em curso, era importante fazerem-se levantamentos estratégicos para que as vedetas combatentes pudessem navegar com segurança no labirinto dos rios e estuários da Guiné.

Falando em rios e estuários da Guiné não posso deixar de lembrar o que era a aproximação à entrada do Rio Geba. Recordando isto, penso em como poderiam ter os nossos navegadores demandado tais paragens sem ficarem encalhados naquelas águas amarelentas que entram muitas milhas mar adentro. A plataforma continental espalha-se bastante para o largo e ao sul da entrada do Geba existe uma extensão enorme muito baixa e cheia de escolhos que vai até à Barra Sul.

A primeira vez que subi o Rio Geba foi em 1954, foi na viagem de Guarda Marinha a bordo do emblemático Aviso Gonçalves Zarco, que eu deixaria para a sucata em Lisboa, após de 45 dias de viagem que ansiosa e felizmentesingrámos entre Macau e Llisboa, em 1964.

Normalmente para alcançar a Guiné vem-se de Cabo Verde onde é obrigação passar antes de rumar à costa africana.

Hoje a sonda constitui uma boa ajuda para fazer a aproximação e se o tempo não estiver mau a estima e o ultimo ponto astronómico quase faz o resto. Antigamente o melhor amigo dos navegadores nestas aproximações a terra era o fio-de-prumo para sondar. No entanto, e apesar da ajuda do Radar, não são poucos os olhos que prescutam o horizonte para avistar a bóia de espera fundeada na foz do rio Geba. Depois são mais umas horas até ao porto fluvial de Bissau, passando pelo farol do Caió.



A montagem das torres, em locais devidamente assinalados nas cartas e que anteriormente já tinham servido para levantamentos geodésicos, eram um autentico espectáculo de circo, uma demonstração inequivoca da agilidade do pessoal.
As torres duplas, uma por dentro da outra, eram eregidas cantoneira a cantoneira, aparafusadas umas às outras até atingirem a sua altura máxima que andava salvo erro pelos 40 metros. A agilidade do pessoal que as levantava é digno de menção. Pareciam autênticos macacos dependurados na estrutura de chave de bocas nas mãos e o saco dos parafusos atados à cintura.

Muito perto da torre era escolhido o local para instalação do acampamento, que era abastecido com todo o material e mantimentos para cerca de um mês. O gerador eléctrico não era um luxo para uso do pessoal, mas alimentava um transmissor cujo sinal era recebido por uma estação a bordo.
Os sinais cruzados de três estações devidamente localizadas permitia, com um rigor muito elevado, determinar a posição da embarcação de sondagem, sendo esta posição controlada por sistema montado a bordo do navio. Este é o sistema Raidist.

Muitas vezes o desembarque de material constituía uma operação bastante delicada, muito particularmente quando o mar estava agitado. Recordo-me especialmente do desembarque da estação que no meu primeiro ano foi montada no Norte da Ilha da Caravela a Sul da barra do Rio Geba.
É já mar aberto e estava uma ondulação que levantava e baixava alguns dois metros as embarcações que recebiam o material de bordo, o que tornava muito difícil a manobra de carga das embarcações, escaleres do navio que eram depois rebocados pelos gasolinas para a praia, num ponto o mais próximo possível do local de instalação da estação. Se bem me lembro a guarnição destes pontos era de três homens. Um telegrafista, um fogueiro e um auxiliar indígena. Ali iriam permanecer todo o tempo que durasse aquela campanha. Certa vez os trabalhos decorreram durante 45 dias sem interrupção. Foi lá para os lados da Ilha de João Vieira! Tivemos de ser reabastecidos de géneros e água por uma barcaça de desembarque, LDG e por uma vedeta LFG. Numa das estações o pessoal permaneceu a bordo de uma embarcação amarrada a um palanque contraindo com tubos de ferro galvanizado, que suportava a estação Raidist e que na maré baixa ficava em seco e na maré-alta quase dentro de água. Não é de ignorar a grande amplitude das marés da Guiné, que na maré baixa aumenta a sua superfície em mais de um terço da sua superfície.

Ainda a propósito de desembarques de material lembro o desembarque para uma torre numa praia do sul da Ilha de Orango Sul. A praia de mar aberto, estava com uma rebentação pequena, mas que não permitia varar os escaleres na praia e assim, enquanto quatro homens com a água até ao pescoço tentavam manter as embarcações aproadas ao mar, o pessoal colocava umas poucas de cantoneiras ao ombro, um à frente e outro a trás e dirigiam-se para a praia. Um dos homens era o “Meio Quilo”, assim conhecido pelo seu pequeno porte, e quando vinha uma vaga era submergido por ela sem no entanto deixar de gritar antes de ser atingido “atenchão ... ! “.
Só por sorte não fiquei sem os dedos da mão quando uma dessas cantoneiras deslizou por cima de uma das minhas mãos enquanto agarrava o escaler.

Eram umas praias maravilhosas e devem continuar a ser, mas o acesso a essas paragens deve ser tão difícil como outrora. Nesse mar a umas poucas de milhas para o sul jaziam as carcaças de vários navios que enchurraram naquelas paragens. Da sua carga haviam muitos toros de madeira que foram parar às praias do sul do Ilhéu de Cute, a norte da ilha de Uno, onde permaneciam há já muitos anos, e possivelmente ainda lá se encontram.

A perigosidade destes desembarques era aumentada pela existência de muitos tubarões naquelas águas, mas também foi o sítio onde encontrei mais golfinhos, que acompanhavam a embarcação durante várias horas.
A propósito de tubarões tenho duas experiências pouco agradáveis. Uma foi durante um desembarque no Norte da Ilha de Orango. Quando saltava do bote de borracha, para dentro de água, apareceu um tubarão a um metro de nós que tive de afastar a tiro de carabina. A segunda foi na Foz do Rio Cacine, quando me dirigia para um banco onde se estava a montar uma marca para suporte de um reflector de radar, com o bote cheio de pessoal. As águas estavam um pouco agitadas e de repente apareceu uma enorme barbatana de tubarão a poucos metros de distância, o que naquelas paragens não era de estranhar, mas comecei a rezar quando olhando para o painel de popa do Zebro (bote de borracha) vi que este se estava a descolar dos flutuadores. Fiquei muito caladinho, desacelerei o motor de poupa de 50 cavalos de que não gostava nada, pois sempre gostei mais de andar com os Mercury de 20 cavalos, e lá fui até ao baixo, que passadas poucas horas seria totalmente engolido pela maré
A montagem destas marcas de navegação era um trabalho arriscado que tinha de ser feito aproveitando o intervalo das marés. Era um trabalho feito contra relógio!
A Missão instalou várias marcas deste género, que permitia a navegação por Radar naquelas canais estreitos por entre baixios traiçoeiros. Nessa área existem, assinalados, na carta hidrográfica que foi produzida com o nosso trabalho, vários baixios a quem foram dados nomes de oficiais do navio, alguns deles só com as iniciais como é o caso do baixio JAL, ou pelas alcunhas, baixo do Bill, ou ainda com o nome do cão, Jacomai.

As marcas eram constituídas por varas de 6 metros de tubo galvanizado de 12 polegadas de dia metro, sendo uma delas quase totalmente enterrada na areia com uma maquineta constituída por quatro braços de uma braçadeira e que eram movimentados pelo pessoal enquanto uma vara no interior do tubo descarregava a água comprimida por uma bomba (P60) do serviço de incêndios, que abria o caminho para o tubo ir descendo na areia.

Na foz do Cacine eram vulgares os aparecimentos de tubarões. Costumávamos pescá-los por desporto. Do maior que pescámos, ainda possuo a dentadura.
O bicho era de tal maneira grande que uma vez içado, pela cauda no turco de uma das embarcações, já esta estava a tocar no turco e ainda a cabeça se encontrava dentro de água. Era uma fêmea que deu à luz, quando já se encontrava no convés inferior para onde tinha sido içada.
Os indígenas devolviam ao mar os tubarõezitos pequeninos porque eram “mininos”.


O trabalho da Hidrografia é extraordinariamente compensador sob o aspecto profissional e satisfação pessoal. Começava-se por ter uma prancheta de papel colada a uma chapa de alumínio para evitar deformações No principio esta prancheta está completamente em branco, mas todos os dias são lançadas sobre ela centenas de sondas posicionadas em pontos assinalados, picando com uma agulha de coser.

Elegida a área a sondar, dispúnhamos duas formas de posicionamento de acordo com o local a trabalhar. Quando se tratava de áreas junto à costa utilizávamos normalmente a sondagem com posicionamento por sextante. Para isso era necessário determinar na carta e no terreno pontos conspícuos devidamente determinados geodésicamente, o que no caso das costas da Guiné era uma operação quase impossível, de tal forma a sua silhueta era regular. Lá se conseguia aqui e ali um poilão, mas muitas vezes havia que construir pequenos sinais e usar também as torres do Raidist.
Quando se tratava de áreas mais abertas então recorria-se ao posicionamento por Radist

Consumi umas boas horas da minha vida a sondar a sextante. Era eu e o Comandante que normalmente fazíamos esta espécie de trabalho mas evidentemente sem exclusividade. Com a intercepção de dois ângulos com um ponto comum obtínhamos a posição da sonda o que era devidamente assinalado na prancheta de trabalho. Era quase lusco-fusco e já mal se viam os pontos quando havia de desistir para continuar no dia seguinte bem cedinho.
Para almoço levávamos três ou quatro sandes um termo com chá e uma ou duas cervejas. Para vamos para trincar uma sandes, ou aproveitávamos uma mudança de local para nos alimentarmos. E que dizer do clima? Muito, muito quente e extremamente húmido. Uns calções e uma camisa de caqui um boné com uma aba rígida para a nuca e uma mole que nos permitia fazer as observações sem encandeamento. À chegada a bordo, um banho de água salgada com sabão especial, um balde de água doce para enxaguar. Jantar e ir para a sala de desenho analisar o rodo da sonda até o cansaço aconselhar a atirar o corpo para cima do beliche, porque à alvorada teria de estar pronto para outro dia igual. Apesar de se estar a trabalhar em águas interiores raras não eram as vezes em que havia de suportar balanço durante todo o dia nas pequenas embarcações de sondagem.


Caricatura rascunhada por essa altura


Relembro uma vez ao largo, entre a Ilha da Caravela e os Ilhéus de Unhocomo e Unhomomozinho, com o navio fundeado a norte de Unhocomosinho, andar o dia inteiro a sondar, a Raidist, debaixo de uma nortada que levantou uma surriada dos demónios.

A embarcação seria o Buba ou o Mansoa, não sei, mas como eram gémeas quase só se via a diferença quando se olhava para a cara do Patrão, O Agostinho ou o. Joãozinho Peciche.
A dada altura afastei-me tanto do navio que o perdi no horizonte e o pior é que o Raidist se avariou e quando a bordo me julgavam perto eu ia-me afastando cada vez mais para noroeste. Bem que clamava para o navio que não podia ser, mas continuaram a mandar-me seguir numa dada direcção, até que me perguntaram se eu ainda via o navio a que eu respondi que não mas que sabia o azimute da sua localização. Fiz meia volta e demorei bem mais de hora e meia a regressar. Quando cheguei o meu casaco encharcado, conseguia menter-se em pé. Eu tinha levado uma grande sova. Quando digo eu, não é porque me queira esquecer do resto do pessoal que guarnecia a embarcação. Dois patrões que se iam revezando, um proeiro, todos indígenas e um telegrafista que operava a sonda. As comunicações eram asseguradas por uns Walki Talkies de cuja marca já não me recordo e que tinham um alcance de umas dez ou quinze milhas, mas às vezes falhavam.

A prancheta a bordo era todos os dias cheia com a informação que se recolhia nos registos do posicionamento por Raidist e informação tratada do rolo da sondagem. Apesar de não ser o trabalho duro da sondagem exigia um esforço de concentração e havia sempre um trabalho de verificação por outro ou outros oficiais, pois que o rigor era lema daquela Missão.

Os desembarques nas ilhas eram muitas vezes necessários. Um dos locais mais simpáticos era a povoação de Anhonhe, na Ilha de Uno, no Sul do arquipélago dos Bijagós. O administrador era muito solícito. Vivia para ali só com a mulher guardando a campa de um filho que lhes tinha morrido naquelas paragens, onde a única ajuda médica seria a do feiticeiro.

As gentes eram simpáticas e de cada vez que o Pedro Nunes fundeava no canal entre aquela ilha e a de Orango, era dia de festa (ronco) na localidade. As bajudas, as teenagers lá do sítio, vestiam-se de lama branca da cintura para cima pois envergavam somente uma saia feita de palha. E algumas mais evoluídas um soutien.
Perto da casa do Administrador existia um campo de capim razo, mantido assim pelas vacas que por ali pastavam e que servia para os pequenos monomotores aí aterrarem e levantarem voo. Faziam uma passagem muito baixa para afastar as vacas e depois atiravam-se para aquela pista que faria a inveja de qualquer aeroporto moderno! Saí daí numa avioneta para ir para Lisboa frequentar o Curso Naval de Guerra!

As idas do navio a essas paragens eram muitas das vezes exploratória. Singrávamos águas onde nunca teria ido nenhum navio daquele porte. A navegação entre as ilhas era extremamente difícil e muitas das vezes íamos usando as cartas que íamos desenhando. Os canais mais fundos que serpenteavam entre os bancos de lodo e areia eram muito estreitos e caprichosos. A única forma de navegar era com suporte no radar e na sonda. Apanhámos muitos sustos, um deles no canal sinuoso e muito estreito entre a ilha de Bubaque e a de Orango.




Sabiam que a silicone foi inventado pelos Bijagós?

Fomos à Ilha de Uno para aí estabelecer mais um acampamento com uma estação Raidist e o desembarque fez-se numa pequena praia a leste da povoação. Uma das dificuldades era o desembarque dos geradores que nessa altura já seriam uns monocilindros Lister, que pesavam imenso. Da praia para terra firme havia uma pequena ladeira um pouco escorregadia e não sei como aquilo foi arranjado, mas de repente ficou um indígena sozinho com o motor às costas. Já não me recordo do nome dele, mas era um verdadeiro touro. Só dizia ai. Ai. Ai, mas não arriou. Nesse mesmo desembarque aconteceu uma peripécia muito engraçada. O marinheiro telegrafista que ia ficar naquele acampamento era o Forno, que era um pouco gago, mas mais gago ficou, quando sentiu algo a bater-lhe nos calcanhares e começou a gritar coooo..bra, coo….bra, coo….bra.! Verificou-se que tinha sido o tomadouro da maca, explique-se que a cama dos marinheiros era uma espécie de lona de descanso, com um colchão, à semelhança das redes de descanso, e que depois de enrolada para arrumar durante o dia era apertada com os cabos que serviriam para a suspender. Ora um desses cabos desenrolou-se e começou a bater-lhe nos pés e quanto mais corria mais o cabo saltava, daí a sua aflição tanto mais que era sabido que todas aquelas ilhas estavam infestadas de cobras. Numa estadia, mais tarde, houve um marinheiro mordido por uma cobra altamente venenosa. A bordo não tínhamos médico, mas os enfermeiros que para ali iam era normalmente antigos e muito bons profissionais, com estadias prolongadas nos pós operatórios do Hospital de Marinha. E assim o enfermeiro fez uma incisão na perna mordida e começou a chupar e a cuspir o veneno da ferida, sentindo-se a certa altura também ele afectado. No fim tudo correu bem. A Missão do Sono onde existiam os maiores conhecedores de cobras da Guiné, disseram mais tarde que a cobra deveria ser pequena ou teria usado veneno há pouca tempo, caso contrário teria sido difícil salvar o indivíduo.

Uma outra peripécia, e julgo que também estávamos junto da ilha de Uno, foi a de um marinheiro que apresentou queixas abdominais. O enfermeiro observou-o e diagnosticou uma apendicite aguda aconselhando o regresso urgente a Bissau para ir para o Hospital. Levanta ferro, deixa tudo para trás e passadas não sei quantas horas estava o doente a ser observado no Hospital, mas o médico dizia que não era apendicite e que deveria esperar-se algum tempo para ver a evolução, no entanto o nosso enfermeiro teimava que o doente deveria ser operado de imediato. E assim se fez, concluindo-se que o enfermeiro tinha razão e a operação era mesmo muito urgente.




Enquanto algum do pessoal preparava, material para desembarcar mais uma estação o outro aproveitava para tentar pescar Alguns dos fundeadouros permitiam apanhar muitas Sinapas, uma espécie parecida com as bicas que aparecem por vezes por cá à venda, mas só quando calhava apanhar fundos de areia e rocha. Nos fundos de lodo só apanhávamos Bagres que são uns peixes gato de fundo que por vezes atingem quase um metro. As melhores pescarias faziam-se ao corrico com linha de 1 milímetro ou mais, segura na mão, mas de luva de cabedal calçada. Com o bote de borracha e em locais que já havíamos identificado fazíamos passagens junto a rochas submersas e se a sorte estava do nosso lado apanhávamos peixe para toda a guarnição. Eram Charéus e grandes Bicas. Apanhei umas duas barracudas, mas não eram muito frequentes naquelas águas.




O que não pode deixar de ser referido eram as verdadeiras orgias de ostras.
Quando fundeados entre os ilhéus, enquanto uns trabalhavam, outros iam apanhar ostras, que é como quem diz, cortar uns ramos ao mangal onde as ostras haviam crescido. Eram aos milhares e comiam-se de várias formas. Ao natural, em pichepache de ostras que era uma espécie de sopa de ostras com muito limão da Guiné, tubo bem regado com umas cervejas de importação. Fazíamos refeições completas de ostras.
Em Bissau havia um pequeno restaurante, que na altura era o melhor da terra, que tinha como especialidade as ostras e o camarão apanhados lá para os lados do Biombo. Era o Restaurante do Vara Longa. Era ele, a mulher e a filha, rapariga interessante comparada a fruta madura à espera que a colhessem. Gente simpática que regressados ao continente se estabeleceram lá para os lados de Salvaterra de Magos. Nunca mais os vi.
As mesas cá fora, enchiam-se de gente a comer travessas e travessas cheias de ostras e as cascas eram atiradas para debaixo da mesa, onde formavam enormes montes.
Para além destes é de referir o Zé da Amura e o Solar dos Dez
Mas voltando às pescarias.
Um dia corricava ao sul da Ilha de Calhambaque, com o Comandante Andrade e Silva num bote de plástico cujo fundo era extraordinariamente escorregadio e a certa altura, peguei uma barracuda mas, a movimentação dentro do bote, para não ser apanhado pelos seus dentes, provocou uma escorregadela do Andrade e Silva e vi-me de repente com a barracuda numa mão enquanto com a outra segurava o camarada para não ir parar à água. Nessa altura nenhum de nós imaginava que ele viria a ser Chefe do Estado-maior da Armada uns bons anos depois.

Após algum tempo de duro trabalho de sondagens, havia que ir a Bissau, para reabastecer e deixar trabalho já executado.
Eu era normalmente quem desenhava u7m esboço das cartas de navegação que iam resultando do nosso trabalho e para tal construímos uma prensa em madeira para que, com o sol e amoníaco, conseguíssemos copias que eram entregues ao Comando Naval em Bissau, para poderem ser utilizadas se necessário pelas vedetas combatentes. Não nos esqueçamos que estavamos em guerra!

O regresso a Bissau era sempre rodeado de várias acções, sendo uma delas o acompanhamento das embarcações de sondagem que iriam fazer toda a viagem pelos seus próprios meios. Em princípio a viagem era planeada a contar com as marés, pois que a corrente vazante no rio Geba é extremamente forte e para as embarcações de sondagem era uma distância considerável a cobrir.

O porto de Bissau tinha um movimento relativamente pequeno, a não ser quando chegavam os navios mercantes que asseguravam a logística de abastecimento das tropas portuguesas que a todo o custo tentavam manter a soberania nacional naquele território. Não estou a contar com o movimento das lanchas de marinha que tinham no porto de Bissau a sua base.

O cais era bastante bom mas era sempre aborrecido permanecer aí atracado, porque a amplitude das marés era de meia dúzia de metros.
Por este motivo ficávamos muitas vezes fundeados ao largo, pendentes das nossas embarcações para vir a terra.

Bissau era uma cidadezinha muito simpática. Uma avenida central no meio da qual se encontrava a sé imponente, e ao cimo uma rotunda monumental, mas que em nada se compara com as rotundas que podemos encontrar hoje espalhadas pelas nossa estradas, algumas delas com dimensões que fazem empalidecer de inveja muitas das maiores da Europa, com monumento no centro, a Praça da Bajuda, junto à qual se encontrava o Palácio do governo.

Para um e outro lado desta avenida corriam duas ruas paralelas, com área residencial e algumas lojas.

A avenida marginal, perpendicular à avenida, desenrolava-se ao longo da margem do rio, desde o quartel dos Fuzileiros até ao Comando Naval tendo a fortaleza da Amura como a edificação mais antiga e importante. Paralelamente e mais para norte corria a rua do comercio, onde se encontravam as lojas de tentações para os militares cediados em Bissau. Eram as máquinas fotográficas, os rádios, os gravadores, etc., etc. Era a loja do Taufiksad, a do Pintosinho e outras. Ao fundo da Avenida destacava-se pelo seu tamanho a Casa Gouveia, que estava ligada a outros negócios maiores como explorações de amendoim e outras. Fui mais tarde, em 1977 encontrar estas casas todas vazias. Na Casa Gouveia, destacava-se por ridículo, no meio da casa um grande monte de rolos de papel higiénico a contrastar com as prateleiras literalmente vazias.

Na avenida marginal, como a recordar a epopeia marítima portuguesa e os descobrimentos, hirto na sua indiferença de pedra, a estátua do Gançalves Zarco.

Uma das curiosidades que se encontram naquelas ruas são os alfaiates que pedalam as suas velhas máquinas de costura Singer, confeccionando os trajes de panos brancos e coloridos para todos os gostos.
As ruas fervilham de movimentos das gentes de todas as raças e credos, umas demasiado vestidas, outras nem tanto.

Na rua mais a oeste encontrava-se o mercado, que era dos pontos mais interessantes, a não perder, pela variedade dos produtos aí transaccionados, e pelo colorido das roupagens das gentes que se movimentavam naquele espaço. Era também a rua dos restaurantes que mais frequentávamos, para saborear um boa cachupa ou acompanhar umas cervejas com os deliciosos camarões do Biombo ou as esplêndidas ostras do mangal. Nunca mais consegui comer ostras com tal qualidade.

Bissau era também uma espécie de metrópole onde se exibiam todas as raças, e que são muitas, da Guiné e regiões fronteiriças. Os Fulas com as suas vestes compridas e as suas súmbias enfiadas na cabeça distinguiam-se bem entre todos, mas abundavam os Papeis, os Manjacos, os Balantas os Mandingas e mesmo alguns Bijagós.





Quem se aventurasse para a estrada que dava acesso ao aeroporto, Aeroporto de Bisasalanca poderia visitar o bairro indígena do Alto do Crim, o que no entanto não era muito aconselhável.


Como se sabe nem sempre Bissau foi a capital da Guiné, pois durante muitos anos Bolama que fica numa ilha mais a sul e com o mesmo nome, foi a capital. Só lá fomos uma vez, mas eu não cheguei a desembarcar. Pareceu-me uma terra que parara no tempo, uma cidade fantasma.

Em terra firme pouco conheci da Guiné pois limitei-me a ir a Bafatá, que é a terra dos ourives, ou melhor dos artistas que trabalhavam a prata e a Mansoa, mais para o norte, onde já estivera quando da minha viagem de guarda – marinha, e ainda viria a voltar mais uma vez em 1977
O trânsito naquelas estradas, se assim se podem chamar, era muito penoso e para fazer meia dúzia de quilómetros demorávamos horas. O risco de sermos atacados pelos chamados turras estava sempre iminente.

Todo o meu conhecimento se resume às ilhas do Arquipélago dos Bijagós e aí sim julgo que desembarquei em todas elas, mas numa não passámos da praia. Foi no Ilhéu de Cute. Mal saímos da praia e começamos a internarmo-nos no mato encontrámos duas mambas verdes, que são das cobras mais mortíferas da região, matámo-las a tiro, mas desistimos da nossa expedição por a julgarmos demasiado arriscada e porque não ser importante. A família daquelas cobras ainda deve manter hoje a guarda daquela floresta inexpugnável.

A estadia em Bissau era sempre muito agradável, mas a mais curta possível. Suficiente para reabastecimento e alguma reparação julgada necessária, pois em campanha só se acudia a urgências, como daquela vez que uma das embarcações ficou com o veio do hélice empenado e foi necessário proceder à sua substituição. Içámos a embarcação de sondagem pela popa no turco da embarcação do navio, e que não era suficientemente forte para poder içar toda a embarcação a reparar e com a sua proa dentro de água, engendrámos um andaime que permitiu sacar o veio e trocá-lo por outro.

Mesmo assim, estas curtas estadias permitiam-nos manter uma vida social muito activa.
Porque a bordo do Pedro Nunes se comia excepcionalmente bem, convidávamos muitos camaradas que ou viviam a bordo das lanchas que mantinham a resistência aos combatentes guineenses que normalmente chamávamos de terroristas, termo que de forma alguma, não deveria aplicar-se a quem lutava pela libertação da sua terra, ou a camaradas que viviam com as famílias em terra em condições relativamente precárias, principalmente no tocante à alimentação. A praça era farta, mas de produtos indígenas. Peixe havia pouco e a carne era de qualidade duvidosa.
Um jantar a bordo do Pedro Nunes que tinha por comandante um belíssimo “groumé” era coisa a não perder, tanto mais que sempre se arranjava um peixe fresco ou um bacalhau, vindo de Lisboa na última viagem da Rita Maria à Guiné. Além disso o Zèzinho Macaco também era uma atracção. Não me esqueço do Governador Arnaldo Schultz a brincar deliciado com o símio.

Era um ambiente propício a fazer-se amizades algumas que ainda hoje perduram como é o caso da minha com o Comandante Prudêncio Fernandes, oficial que viria a ter, já eu me tinha vindo embora, um aparatoso acidente de viação, quando se dirigia a uma pequena exploração agrícola que mantinha para satisfazer as exigências das messes da Marinha. Ficou marcado para toda a vida. Nem só em combate se sofre, pois que os que estão na retaguarda, no apoio logístico, também têm a sua quota- parte. Ainda hoje nos encontramos todas as semanas e alimentamos uma amizade sadia.

O comandante do navio, que infelizmente já há muito não se encontra entre nós, João Paulo Bustorf Guerra, era um homem de grande valor em toda a acepção da palavra. Apesar de não ser Engenheiro Hidrógrafo, (também não pretendia ser 1º Ministro!) tinha um passado ligado à hidrografia e à geodesia que o tornaram um profissional competente admirado por todos os que com ele trabalharam. As suas actividades em levantamentos geodésicos no norte de Moçambique e região do Niassa, deixaram testemunhos para todo o sempre. De uma grandeza de carácter notável, para além das suas esplêndidas qualidades de oficial da marinha, como marinheiro afoito para o mar, e bom manobrador, era elegante nas suas atitudes, e o seu comando um prazer para todos os seus subordinados, conseguindo tornar a vida difícil inerente a uma missão tão árdua e importante, num tempo em que todos se sentiam profissionalmente e socialmente realizados. Não só era o comandante do navio como realizava todas as tarefas de hidrografia, dando um exemplo e incentivo a toda a guarnição. Viria a regressar a Lisboa antes de finda a Comissão, quando foi nomeado comandante da Escola de Fuzileiros, cargo que viria a desempenhar com notabilidade. Regressámos a Lisboa nesse ano no fim da Campanha sem comandante, mas como o Eng. (eu) era o oficial mais antigo estabeleceu-se um acordo de cavalheiros e o Bill tomou as rédeas de tudo o que era comando e navegação do barco.
As estadias fora de Bissau duravam várias semanas e trabalhava-se muitas horas por dia (15, 16, 17 e às vezes mais) e numa das ocasiões foram só 45 dias sem qualquer folga. Mas o trabalho via-se e o H.I. chegou a pedir-nos que fizéssemos menos por comissão porque não conseguiam digerir toda a informação que reuníamos. No entanto os relatórios do comando eram puramente circunstanciais, e sem observações supérfluas que poderiam induzir a colheita de louros, como conhecíamos algumas. Socialmente o Comandante era o que se costuma dizer um Senhor. Bon vivant , tendo por lema “Trabalho é trabalho e conhac é conhac “. Tinha muitos bons amigos e recordo as tardes no velho English Bar , no Belcanto e noutros bares elegantes daquele tempo de Lisboa.

De volta ao trabalho propriamente dito lá descíamos o Geba, em demanda de fundeadouro o mais próximo possível da área a sondar.
Num dos anos fomos fundear à foz do rio Cumbijã a sul da restinga de Melo. O rio era muito utilizado pelas vedetas pequenas da Marinha e a entrada estava mal definida nas cartas. Andámos um par de dias a sondar a área, mas a certa altura houve necessidade de ir cortar a linha do praia- mar na praia da ilha de Como. Como era uma região com bastante actividade de combatentes guineenses tiveram que ser tomadas todas as precauções para não sermos apanhados descalços e assim foi montada na proa da embarcação de sondagem uma metralhadora, não sei quantos, mas que se necessário faria muita moça antes de ser calada.

Quem andou a sondar essa área foi o Comandante e o ten. Martinha e aconteceu que um dia iam morrendo com um embaraço gástrico. Tiveram que interromper as sondagens por se estarem a sentir muito mal. Vieram para bordo e foram postos a soro. Todos tínhamos comido o mesmo e a intoxicação alimentar foi posta de parte, no entanto viemos a saber que tinham sido os únicos a beber um gin tónico antes do almoço e neste comeram-se ostras. Viemos a saber mais tarde que esta combinação era muito perigosa. Desta safaram-se e aprendemos toda uma lição.
Um dia apareceu-nos uma das lanchas pequenas que vinham do rio Cumbijã com um crocodilo que mal cabia no castelo da proa do navio. Mas que grande bicho!. Foi apanhado a tiro, quando estava num banco de areia a dormir ao sol, é uma das razões porque é perigoso apanhar-se banhos de Sol! Uma noite nesse fundeadouro, estávamos a jantar, quando aparece o cabo de quarto a comunicar de que estávamos a ser alvejados por rajadas de uma lancha. O comandante deu ordem de ocultação de luzes e lá fomos todos a correr para os nossos postos. Apesar de ser um navio que não andava em missões de guerra, quando alcançámos o convés verificámos que a ocultação de luzes estava perfeita. Logo de seguida veio a verificar-se que tinha sido um erro de avaliação de uma das nossas vedetas, vinda Foz do Rio Cacine que nos tomou por um célebre navio fantasma, do inimigo, que se lhes andava a escapulir há muito tempo.

Uma das vedetas que frequentava aquelas águas era a Belatrix comandada por um oficial da Reserva Naval, com quem resolvemos brincar. Convencemo-lo a que seria necessário pintar a ponte do seu navio de branco para nos servir de marca de referência e que lhe iríamos mandar a tinta necessária para o efeito. Para tal foi trocada correspondência por mensagem. Depois de o termos convencido dessa necessidade, foi enviado pela embarcação de bordo a tinta, que por sinal eram dois garrafões de belíssimo vinho branco da região de Coruche e que recebíamos directamente do produtor.
Este episódio é contado pelo próprio ex comandante de vedeta, Dr. Manuel Torres, numa revista da Reserva Naval.
Não me recordo se foi nesta ocasião ou noutra que embarcámos uns fuzileiros para nos darem cobertura às nossas actividades pois como já referi não era chão em que se facilitasse e havia que se estar sempre em alerta. Utilizavam os seus botes de borracha Zebro equipados com motores Mercury de 50 cavalos, mas em comparação connosco eram extremamente graneleiros e descuidados com o material e assim passei não sei quantos dias a desmontar, limpar e a remontar os motores que chegavam a bordo cheios de areia da praia. Era eu de um lado e o Sarg. Moitão do outro. O pessoal da máquina era extraordinário e nunca tivemos grandes problemas com a instalação de máquinas do navio na Guiné. Tivemos sim, nas águas de Cabo Verde, mas a isso talvez me venha a referir um dia.

As estadias fora de Lisboa, chamadas de Comissões da Missão incluíam parte do tempo passado em Cabo Verde para complementar os trabalhos hidrográficos do Navio Almeida Carvalho. Um dia se a disposição me permitir ainda deixarei a minha memória vaguear graficamente por esses tempos.

A propósito de fuzileiros e de lanchas, não posso deixar de referir os elementos das Forças Armadas que combateram para que aquela parcela de Africa não se separasse de Portugal.
Existem muitos relatos de missões de guerra e de situações de aperto das nossas gentes e das que sendo da terra se juntaram a nós para combater os chamados turras. Algumas das descrições que agora vão aparecendo não são histórias, mas testemunhos do sacrifício que lhes foi imposto, por uma politica desastrosa dos anos 60/70. E por falar em politica. Quando é que ela deixa de ser desastrosa? Recordo um “brain storm” num curso superior naval de guerra em que se perguntou qual seria o caminho a seguir, para acabar com a Guerra-fria e um dos presentes adiantou “acabar com os políticos”. Não digo quem foi, mas eu sei. E ainda não mudou de ideias!

A chegada a Lisboa é sempre um acontecimento a marcar a vida de um marinheiro. Quando o vulto da Serra de Sintra se desenha no horizonte o peito enche-se de ar e as saudades começam a escorrer dos corpos, começando a embotar as recordações da Comissão cumprida, do mau tempo apanhado pelo caminho, das saudades da família para os que a atinham, e a sentir que o ar era familiar. Estávamos a chegar a casa! Agora era só demanda45r a barra sul, deixar o farol do Bugio por estibordo e o vetusto forte de S. Julião por bombordo e apontar à ponta de Cacilhas.

Não sei precisar em qual das chegadas tivemos o prazer de ver a ultima secção do tabuleiro da ponte Salazar a ser içada para o seu lugar.

Tenho imensa pena por não ter uma memória que me permitisse partilhar com outros as minhas andanças de marinheiro. Do mau tempo no mar ainda me restam alguns testemunhos fotográficos.
Nunca fui de rezas, mas muitas vezes sozinho na ponte, de quarto, prescutando o horizonte, tentando avistar alguma luz, quando o navio subia na crista da vaga em mar revolto, com o vento a cortar a respiração, compreendi os que nessas ocasiões se entregam a quantos santos conhecem. Nessas alturas tenta-se visionar a vida a bordo das caravelas. Não nos lembramos que quão pequeno é o barco em que estamos. Não chegava às mil toneladas.
Quinze anos no mar e não sei o que é um paquete! Não, não me estou a referir, naturalmente aos paquetes da última geração, mas mesmo a um Funchal ou a um Príncipe Perfeito!
Mesmo assim sempre era melhor andar no mar no Pedro Nunes do que a bordo dos dragaminas americanos pequenos com as suas trezentas e tal toneladas de deslocamento. Não é que os navios não aguentassem, mas pobre dos que iam a bordo. “ Navios feitos de pau para homens de pau feito.” Como costumávamos dizer por brincadeira.

JAL

Lx. 07-05-01




quarta-feira, 11 de abril de 2007

Discus





Quem alguma vez teve a fortuna de ver, num aquário bem ornamentado e devidamente tratado, um DISCO, ficou com certeza hipnotizado com a beleza impar que emana daquele peixe.
A sua forma tão própria, a maravilhosa distribuição de cores, o seu nadar, que mais se assemelha ao voo planado de uma ave do que ao nadar dos outros peixes, granjearam-lhe o titulo pomposo de REI do Aquário.
CLASSIFICAÇÃO
-- CLASSE : Teleosteos
-- SUB-CLASSE : Neopterigios
-- ORDEM : Perciformes
-- SUB-ORDEM : Percoideos
-- FAMILIA : Ciclideos (Bonaparte 1840)
-- GENERO : Symphysodon (HECKEL 1840)
-- TRIBO : Cichlasomini (Hoedeman 1948)
PRIMEIROS DADOS DOS DISCOS
- Symphysodon Discus (Heckel 1840)
- Symphysodon Aquafasciata (Haroldi 1960)
- Discus azul com duas variedades locais Royal Blue e Turqueza
- Symphysodon Aquafasciata aquafasciata ( Pelegrin 1903) - (Disco Verde)
- Symphysodon Aquafasciata Axelrodi (Schultz 1960) - (Disco Castanho)
DESCRIÇÃO DO GÉNERO
Trata-se de peixes com formas claramente redondas e comprimidas lateralmente. Possui 44 escamas sobre a linha lateral que vai da cabeça até à base da barbatana caudal. Tem uma barbatana dorsal que envolve quase completamente o bordo superior do peixe, uma barbatana anal que faz o próprio bordo inferior, duas barbatanas peitorais muito desenvolvidas que são as mais importantes para a progressão do peixe dentro de água. Possui ainda duas barbatanas abdominais cujos primeiros raios se prolongam bastante e uma pequena barbatana caudal que parece de certo modo desproporcionada em relação ao tamanho do peixe. Todos os dados recolhidos sobre a sua morfologia apontam para um peixe de grandes espaços livres e natação rápida, o que não corresponde muito à realidade.
HABITAT
Os DiscUs são originários da bacia do Amazonas, maioritariamente no Brasil, aparecendo também na Colombia, Equador e recentemente na bacia do rio Orinoco na Venezuela .
Cada espécie e sub-espécie têm lugares específicos, assim,
Discus no Rio Negro
Aequafasciata no Rio Tefe
Axelrodi no Rio Tapajos
Aroldi no Rio Purus
Apesar das enormes distâncias que separam estes lugares, as características da água são muito, parecidas, águas muito ricas em ácidos humicos com tonalidade do chá, castanho escuro, pobres em minerais, resultantes da decomposição da matéria vegetal e que constitui uma massa biológica imensa com mais de cinco milhões de quilómetros quadrados, que é arrastada pelo Amazonas.
Estima-se também em toneladas de argila, terras, rochas e arvores que o rio arrasta de um lado para depositar noutros, formando inúmeras ilhas, lagos, etc..., onde vivem as colónias de Discus. Estes não se encontram nas zonas de grandes correntes, mas sim nos remansos das ilhas, nos lagos, entre as raízes submersas, ao abrigo da rica vegetação palustre. As folhas das arvores que caiem nas águas durante as tempestades tropicais, largam o seu substracto que é sujeito aos raios solares, indo assim afectar as características da água.
As maiores colónias destes peixes encontram-se em lugares de águas calmas, e ao abrigo da luz intensa, o que aconselha a usar nos aquários onde os queremos manter, filtragens eficazes, mas de fraca movimentação e plantas superficiais, para atenuar a iluminação.
Os índios nativos daquelas paragens que incluem estes peixes na sua alimentação, conhecem bem os locais onde os encontrar.
Características físico - químicas da água :
Temperatura ..........................28 a 30 graus centígrados , podendo atingir os 35 graus
PH........................................entre 4,5 e 7,2 considerando a média de 6 a 6,8
Dureza total...........................3 a 4 graus GH
Dureza de carbonatos............0,5 a 6 graus KH
Estas características são as que se aconselham para manter e criar estes Discos



O AQUÁRIO

Como regra de ouro, a ser observada quando se quiser estabelecer um aquário para Discus é a de observar uma capacidade de 200 litros para cada 4 Discos, considerando que em cativeiro podem atingir os 24 cm. Há que ter em atenção que com tanques de menores capacidades não poderão ser observadas boas condições de higiene - pureza de água e boa oxigenação
Decoração
Na montagem do aquário deve ter-se o cuidado de criar locais de refugio, onde os habitantes se sintam seguros, quando perturbados. Por baixo da areia de sílica, basaltica ou xistosa, de preferência não muito branca, de granometria entre 2 a 4 milímetros, deve ser montado um filtro de fundo, que permitirá o arejamento eficiente da camada de areia e o crescimento normal da vegetação. As plantas em numero abundante deverão ser plantadas de forma a deixar espaços livres para poderem nadar à vontade.
As plantas mais próprias, para esta espécie são os Echinidorus, que suportam temperaturas bastante elevadas.
As rochas decorativas não devem ter arestas agressivas.
O local para colocação do aquário deve ser escolhido de forma que os Discos não sejam importunados, principalmente com brusquidão.
Filtragem
Tem-se como muito importante a capacidade de filtragem do sistema, que deve ser sempre o dobro do utilizado em tanques para outro género de habitantes. Assim para tanques de 200 litros o sistema de filtragem deve ter uma capacidade de 750 litros por hora, com entrada no aquário de forma a não provocar correntes muito fortes.
Apesar destas características da filtragem, devem fazer-se mudanças parciais de água com muita frequência se quisermos manter uma boa estabilidade das condições de vida no aquário.
fotos:http://kendziora.net/photography/discus.jpg

Algumas Questões Técnicas de Aquariofilia




A QUALIDADE – DUREZA A expressão “sente-se como peixe na água” não é totalmente verdadeira se a tal água não possuir as características que o peixe necessita para se sentir bem e viver naturalmente.
A água é para o peixe o que o ar que respiramos é para o ser humano.
A água que o peixe necessita não e o simples H2O que corresponderia à água destilada ou à água das chuvas.
A água que corre nos rios, existe nos lagos ou brota da terra tem uma composição complexa e que é produto das camadas de terra que atravessou ou com quem está em contacto
A diferença entre as águas reside na quantidade e espécie de sais que contém dissolvidos.
As que maior diferença apresentam são a água do mar com as suas 35 gramas por litro e as águas doces cujo teor de sais vai de 0 a 5 gramas por litro.
Entre estes extremos temos ainda a considerar as chamadas águas salobras habitadas por espécies com certas características.



A composição da água do mar é bastante homogénea de região para região e a sua diferença reflecte-se mais na temperatura e densidade do que na composição, pelo contrário as águas doces ou continentais apresentam-se com profundas diferenças de lugar para lugar, pelo que acontece, na maioria das vezes, que as águas da torneira que utilizamos para encher os nossos aquários possuem uma composição bem diferente das águas de origem das espécies que pretendemos conservar e mesmo reproduzir. Por este motivo, apesar do poder de adaptação de muitas espécies ser uma realidade assiste-se com frequência a verdadeiros morticínios.
Pensa-se que o salmão quando regressa ao lugar onde nasceu tem de ir identificando as águas onde navega através da sua composição físico-química e reconhece agua onde nasceu.
Por tudo isto é importante conhecer as características de mineralização das águas que utilizaremos nos nossos aquários.



Existem métodos relativamente expeditos para medir o que se chama de dureza da água e que depende dos sais que contém. Os reagentes de que o comercio de aquariofilia possuem permitem obter dados bastante precisos.
Mais adiante referiremos outra característica muito importante da água que é o PH.
Conhecidas as características da água à nossa disposição poderá escolher-se as espécies que mais convém para povoar o aquário, ou permitirem fazer correcções para manter um certo biótipo.
Mais adiante trataremos os métodos de correcção.
Fervendo a água verifica-se que o valor da dureza baixa sensivelmente. Este facto permite-nos classificar três espécies de dureza.
· Dureza temporária (que desaparece com a ebulição)
· Dureza permanente (que subsiste para além da ebulição)
· Dureza total ( dureza temporária mais dureza permanente)
Segundo o valor da dureza total as águas classificam-se em:
· Águas muito macias entre 0 e 5 º franceses
· Águas macias entre 6 e 10 º
· Águas meias duras entre 11 e 15 º
· Águas duras entre 16 e 30 º
· Águas muito duras superior a 30 º
Para corrigir as águas duras usa-se juntar água das chuvas, quando não poluídas, agua desmineralizada ou destilada.
Nunca se deve utilizar água desmineralizada por desmineralizadores regeneráveis por sal das cozinhas!
A maioria dos peixes e das plantas de aquário requerem ou adaptam-se a águas macias ou medianamente duras.
Algumas espécies exigem águas muito macias, principalmente para se reproduzirem, outros como por exemplo os vivíparos preferem águas mais mineralizadas.



As águas duras da Europa tem a sua origem no conteúdo em cálcio enquanto a dureza das águas africanas é devida ao teor de magnésio.
Já se aludiu à forma de amaciar uma água, mas quando pelo contrário há que a endurecer poderá usar-se rochas calcárias que vão libertando lentamente o calcário ou em alternativa junta-se 1 a 2% de agua do mar.
Não convém utilizar água fervida porque perde muitas das propriedades úteis ao equilíbrio do aquário.
Como a medição da dureza depende de país para país é necessário conhecer-se a tabela de equivalências.
Para além da dureza total é de ter também em conta a Dureza devida aos carbonatos.
Os carbonatos são muito importantes na noção de reserva alcalina não só pela sua qualidade de tampão como também como origem de anidrido carbónico tão necessário às plantas.
ACIDEZ E ALCALINIDADE – VALOR DO PHEsta característica da água depende do número de iões de hidrogénio presentes.
Os factores que influenciam o PH são vários e compreendem – iluminação, temperatura, gás carbónico, oxigénio dissolvido, vegetação, povoamento do aquário, alimentação, etc.
O seu valor vai de 0 de um ácido puro a 14 de uma base química sendo o valor neutro 7.
O PH é considerado como um bom indicador de um certo equilíbrio químico - biológico de uma água em geral e de uma água de aquário em particular.
O baixo valor do PH (4,5 – 5) das águas extremamente doces dos afluentes do Rio Amazonas são devidos aos ácidos húmicos em presença e à carência de calcários na região.
Num aquário com águas mediamente duras ou duras não é possível manter um PH baixo e se isso acontecer será à custa de ácidos fortes
A medição diária do PH durante quinze dias seguidos poderá dar-nos a indicação do estado de equilíbrio de todo o sistema.
Uma fonte importante de acidez do aquário tem origem no ácido carbónico libertado pelos peixes e que se associa em parte à água.
Este gás é tóxico para os peixes mas elimina-se facilmente. Uma parte, como se disse combina-se com a água e forma o acido carbónico, que libertará iões de hidrogénio e provoca o abaixamento do PH. Outra parte irá reagir com o calcário presente no aquário formando bicarbonato de cálcio e vai servir de tampão ao PH e à dureza total.
A agitação da superfície livre da água permite a libertação de grande quantidade de gás carbónico arrastando também carbonato de cálcio ( calcário ) consigo.
Num aquário bem plantado e fortemente iluminado, as plantas absorvem grandes quantidades de CO2 dissolvido, precipitando o bicarbonato de cálcio e dando lugar a um aumento do PH. Um aumento excessivo do PH favorece a eliminação do CO2 dissolvido.
Acima de PH 8.5 não existe CO2 livre na água.
Num aquário novo o valor do PH aumenta facilmente e vai muitas vezes para perto dos 8,5, no entanto como as águas novas tem tendência a saturar-se de bicarbonatos, passadas algumas semanas face ao fornecimento de CO2 pelos peixes e também pela acção das bactérias a situação inverte-se para a acidificação à medida que diminui a reserva alcalina. este fenómeno é notável em aquários com areão não calcário como é o caso da sílica.
Estes fenómenos são muitas vezes desencorajantes para os principiantes menos avisados, que os levam muitas vezes a substituir a água e o areão para começar tudo de novo e vir a deparar com as mesmas alterações.
Este facto por si só justifica a elaboração deste apontamento
Como vimos o excesso deCO2 é em parte eliminado pela formação de ácido carbónico que por sua vez é neutralizado parcialmente pelos elementos calcários por ventura existentes no solo ou na decoração . Esta noção de poder catalisador e de reserva alcalina é importante, mas as quantidades não são geralmente exageradas na água que utilizamos. Pelo contrário no caso da água do mar o uso do calcário é aconselhável tanto para o solo como para a decoração a fim de manter o valor do PH >8
Uma forma de eliminar o CO2 como já se referiu é manter a superfície da água bastante agitada.
Existem métodos químicos artificiais para corrigir o PH que devem ser usados com parcimónia ou em casos particulares como no caso de intoxicação por amoníaco.
Para aumentar o PH de uma água dura pode utilizar-se bicarbonato de sódio.
Para diminuir o PH de uma água dura pode utilizar-se o fosfato acido de sódio
Para diminuir o PH de uma água macia de modo a obter uma acidez favorável à reprodução de algumas espécies aconselha-se a filtragem através de turfa, mas é perfeitamente inútil filtrar por turfa uma água dura para a acidificar. O processo será ineficaz face ao fraco poder acidificante da turfa e ao poder de tampão das águas duras. Não normal e é anti-biológico ter uma água dura e ácida. O interesse essencial da turfa é fornecer a uma água macia um certo poder tampão ácido.
Um outro elemento extremamente importante para o equilíbrio do aquário é sem duvida o Poder Oxidante do ambiente e que de certo modo está relacionado com o valor do PH. Sinteticamente poderá afirmar-se que o potencial oxidante tem uma grande importância para os organismos vivos. Várias são as reacções bioquímicas que provocam fenómenos de oxiredução ao nível das células. Uma dada substância pode ser inofensiva num meio oxidante e ser muito tóxica num meio redutor.
O controle deste facto pode evitar verdadeiras catástrofes. Na natureza as águas tem tendência oxidante mas, infelizmente o contrário sucede no aquário por muito grande que seja.
Tem de se evitar a todo o custo que o ambiente se torne muito redutor. A biodegradação é um processo de oxidação por perda de hidrogéneo e ganho de oxigénio ao nível da célula. Por acção de certas bactérias as matérias orgânicas são oxidadas em produtos amoniacais tóxicos depois em nitritos e por fim em nitratos que são muito menos tóxicos.


Algumas semanas depois de estabelecido um novo aquário as reacções referidas dão-se em meio oxidante sem que os elementos tóxicos apareçam notavelmente. Pelo contrário se o meio se tornar redutor dá-se o fenómeno inverso e a intoxicação dos peixes é imediata com a perda total.
Pelo exposto é necessário manter as colónias de bactérias sempre bem oxigenadas principalmente a nível do solo pois que é aí que as bactérias essenciais à nitrificação são mais activa.
Este fenómeno está na base da utilização da chamada filtragem de fluxo invertido que obriga a água a atravessar a camada do solo de baixo para cima. Este sistema está a ser usado com frequência em aquariofilia de água do mar.
Para evitar o perigo de se estabelecer um ambiente redutor convém fazer pequenas mudanças de água frequentemente o que evita particularmente a acumulação de nitratos, principalmente em aquários com poucas plantas.
Em resumo poderá dizer-se que para manter um aquário em boas condições é necessário ter em conta:
Um bom arejamento
Uma boa filtragem
Mudanças parciais e frequentes de água.



Um projecto de vida...




Tudo tem a sua história, o Homem e a sua obra. A história da RUIMAR que me pediram para escrever é uma história rica, escrita pelo tempo e por aqueles que lhe têm dedicado uma parte muito significativa da sua vida .
Por muito estranho que pareça, a RUIMAR nasceu em MACAU. Corria o ano de 1962 e todos os tempos livres eram dedicados a conhecer de perto essa civilização milenar, enigmática, misteriosa mas tão rica .
Depois de passar muitas horas observando alguns chineses, que tratavam os seus peixes e os seus aquários resolvi que também eu haveria de criar em minha casa um pequeno mundo aquático onde os meus hospedes se sentissem pelo menos tão bem como nos aquários onde tinham nascido e crescido.
Logo que tive o meu aquário de cantoneira de ferro pintado e vidros vedados com massa de vidraceiro apercebi-me que apesar de todos os conselhos recebidos de alguns amigos chineses e macaenses, a tarefa não era nada fácil. Estava lançado o repto. Havia que começar a devorar tudo o que sobre aquariofilia aparecesse escrito em livros ou revistas.
Regressei a Portugal em 1964 a bordo de um velho navio de da nossa marinha de guerra, mas dependurado do teto do camarote balouçava, amarrado por umas cordas um pequeno aquário com peixes tropicais, que seriam os primeiros habitantes de um aquário maior que viria a ser montado em casa dos meus pais e que passou a ser tratado por meu irmão Rui.
Estava lançado o vício. Só cerca de 1968 eu iria começar a brincar de novo com os aquários.
Comecei por dois pequenos aquários no meu quarto de dormir, mas em 1972/73 o numero desses aquários era de 27, enquanto que em casa de meu irmão eles já enchiam um grande prateleira e não seriam muito menos. Era preciso fazer alguma coisa, porque as criações dos peixes mais difíceis iam sobrepovoando os aquários existentes.
Entretanto a convivência com outros aquariofilos, entre os quais terei de forçosamente nomear o Dr. Veríssimo F. S. Borges, biólogo que dedicou grande parte da sua vida à aquariofilia, mas que infelizmente foi obrigado a dedicar-se a outra actividade, e os contactos permanentes com o Aquário Vasco da Gama, permitiu-nos adquirir conhecimentos tais, que nos levaram a montar uma firma. O nome haveria de ser riomar pois viríamos a investigar também a difícil disciplina que constituía a aquariofilia de água salgada. A tentativa de registo do nome da firma saiu gorada porque já existia, pasme-se um alfaiate com esse nome. Mas não estava nada perdido o meu irmão chamava-se e chama-se Rui, assim foi fácil encontrar um nome parecido e nasceu a RUIMAR.



( cartão de 1973 feito a pensar no nome RIOMAR )
Começou devagar, mas com uma característica que ainda hoje se mantém, tornou-se num ponto de encontro de aquariofilistas. Aqui se trocam conhecimentos de toda a ordem. Nunca esta casa teve segredos para ninguém e é seu apanágio transmitir a todos que a procuram os conhecimentos que vai adquirindo com quem sabe, para além de possuir uma biblioteca extraordinariamente completa.
O estabelecimento que se montou em 1973 possuía somente cerca de 20 m2 e uma pequena cave. O numero de clientes e amigos que rapidamente se fizeram, obrigaram a que passados cerca de três anos houvesse que se procurar uma maior área para permitir a continuação da actividade e assim montaram-se umas instalações que ao tempo foram consideradas as melhores da Península Ibérica. Faziam-se importações de várias partes do mundo e desenvolveu-se a fabricação de material próprio.
Foi durante todos estes anos que aprendi as características deste hobby que no fundo não se limita a encher um tanque de água e atirar para lá uns peixinhos, que se fosse só isso no dia seguinte estariam possivelmente mortos para desgosto não só dos pais que gastaram o dinheiro para proporcionar aos seus filhos um hobby educativo, uma via de aproximação, com a natureza de que tantos andam arredados, mas também dos filhos que muitas vezes se vêm queixar de lágrimas nos olhos.
A Aquariofilia abarca tantas vertentes cientificas e técnicas diferentes que se torna um verdadeiro manancial de entretenimento.
Isto só significa que desde o inicio estamos no bom caminho, mas tratando-se de uma actividade que não corresponde a uma necessidade primária, as dificuldades de gestão de uma tal empresa são enormes.
Sobre a importação dos peixes eram cobradas taxas exorbitantes comparáveis a artigos de luxo. O mercado só agora parece estar a acordar para este tipo de actividades. Entretanto a RUIMAR foi pioneira no lançamento de material de aquariofilia segundo a sua concepção, lançou produtos químicos, e editou folhetos explicativos que distribuiu gratuitamente, para que os seus conhecimentos permitissem manter os peixes em cativeiro em perfeitas condições de saúde.
A firma, mercê da sua postura, de transmissão de conhecimento, mais do que de exploração comercial, granjeou a confiança de todos os que com ela contactaram e de certo modo o ressentimento dos que tinham por fim somente o lucro rápido e fácil.
Foi a primeira casa em Portugal, para além do Aquário Vasco da Gama a manter em aquário peixes tropicais dos recifes coralinos do oriente (Filipinas e Singapura) permitindo-nos desfrutar os mais belos peixes do mundo.
Foi também na RUIMAR que foi possível ver a reprodução dos magníficos Discus do Amazonas o que até então só tinha sido possível na Alemanha.
Desta forma a RUIMAR tornou-se conhecida nas Filipinas, Singapura, Tailândia, Brasil, América, Inglaterra, Alemanha, Bélgica, Holanda e etc...
De uma coisa estou certo, é que apesar de todas as vicissitudes da sua existência a RUIMAR continuará a servir o publico com a mesma competência profissional e o mesmo desapego pela parte material, que infelizmente é obrigada a não ignorar.
Tendo em consideração a utilidade didáctica, cultural e social que representa, julga-se que a sua actividade deveria ser amparada, encorajada e difundida.

terça-feira, 3 de abril de 2007

P.S.

Devido à necessidade de reparar um olho, para eliminar uma catarata, tive de recorrer ao velhinho Hospital de Marinha, que os invejosos dos políticos querem tirar aos cansados marinheiros de muitos mares que foram espalhando e honrando o nome de Portugal, pelas sete partidas do Mundo.
Na consulta de oftalmologia fui encontrar um velho marinheiro artilheiro do Gonçalves Zarco, o Carlos Salvador Simões, que durante muitos anos foi a sua Ordenança (marinheiro que assegurava a recolha e entrega da correspondência com as autoridades marítimas em terra ou entre navio surtos no mesmo porto). Este encontro permitiu recordar muitos dos episódios aqui relatados, nos farrapos de literatura desconchavada que vos ofereci. Foi Bom.
Fez-me esquecer o motivo por nos encontrávamos naquela consulta eliminando quase por completo o stress, é assim que se diz agora; porque antigamente dizer-se-ia o cagaço, (as ferramentas de ortografia do Word não aceitaram a palavra), com que estávamos da intervenção cirúrgica que iríamos sofrer.
LX 07-03-16

Macau Continuação



Mesmo antes de tratar da higiene pessoal fui olhar pelas janelas da casa. Duas para as traseiras mostravam a rua que ia desembocar num largo a norte onde depois saberia que se situava o Templo à deusa Mon Ha, duas janelas para cima de um telheiro de zinco e duas para a doca e recinto das oficinas.
Na doca com cerca de 100x100 metros, observei uma velha draga de baldes, uma pequena draga de sucção, atracadas lado a lado junto a um barracão de zinco com aspecto decrépito que mais tarde soube ser a antiga fundição agora desactivada. Uma espécie de cacilheiro de um só piso e duas vedetas de madeira encontravam-se atracadas a um cais que era ladeado por uma construção baixa e comprida que se seguia a um barracão quadrado de zinco.











Não tardou muito que as oficinas se enchessem de operários chineses e entre eles lá vi uma farda de sargento e a de um marinheiro. Já a manhã ia quase no fim quando me apareceu o Director cessante, engenheiro F. N. cuja figura me fez lembrar a tal de palhinhas e bigode que vira à minha chegada na tardinha do dia anterior no cais. Homem esperto mas muito singular este Eng. ! Fez-me a entrega da Direcção das Oficinas num abrir e fechar de olhos e ia-me dizendo. “Você tem muito tempo para ler a papelada que está aí nas gavetas e o À Peng sabe tudo! E olhe quando algum F. da P. o chatear mande-o puxar o cordel daquele frade que está em cima daquela estante! Ouviu? A começar pelo capitão do porto que julga que lá porque é quem é, já pode mandar fazer tudo nos barcos da capitania de borla! É o maior e o pior cliente das oficinas!” Referia-se ao Cte A. S. V., homem honestíssimo competente e trabalhador, com que eu viria a ter as minhas pegas, mas que admirava e cuja memória venero.
As oficinas em si estavam instaladas em edifícios com aspecto degradado e assim se mantiveram apesar dos esforços feitos para mudar a situação. Parece que houve sempre uma falta de interesse dos diversos Governos para desenvolver e melhorar as instalações destas oficinas que eram cruciais para a economia da província, e onde se efectuavam construções navais e obras para serviços oficiais e particulares que lhe conferiram grande importância e o respeito geral. Antes de me referir melhor às oficinas não posso deixar de lembrar a casa do Director, assim se chamava o pardieiro que a Administração me disponibilizou para a minha morada durante toda a estadia, que em principio seria de 4 anos. Poderá dizer-se que se situava no sótão da oficina de carpintaria que se podia observar, através das frinchas do soalho. Para além das divisões que me foi dado observar na noite da chegada, possuía um terraço que se estendia ao longo do telhado das oficinas de carpintaria e da caldeiraria e onde se situavam uns casinhotos que constituíam uma pequena cozinha sem quaisquer apetrecho, um tanque de lavar a roupa, uma divisão dividida a meio por um tabique de madeira esburacado, um compartimento que o Eng. Antas havia utilizado como câmara escura e laboratório fotográfico, a que mais tarde eu haveria de dar a mesma utilização, e uma outra divisão com uma tábua de passar a ferro e umas prateleiras, onde existia uma cabeça de felino embalsamada.. Enfim, umas instalações que faziam inveja às do palácio do Governador! Fui apresentado sumariamente aos mestres das oficinas, à medida que as percorria. À direita, de quem entra o portão, situava-se a oficina de serralharia, um verdadeiro museu de máquinas ferramentas, onde os tornos e demais máquinas bebiam o seu movimento de uma árvore de tambores dependurada da estrutura do teto com as suas correias de transmissão bamboleando-se no espaço, comandadas por forquilhas de deslizamento horizontal. Tudo à custa de um único motor eléctrico. Uma beleza !. Lembrei-me das iluminuras dos velhos livros técnicos que no meu tempo de estudante ia consultar na Biblioteca do Porto. E tudo aquilo funcionava.






Aí vi fazer inimagináveis maravilhas, desde tornear uma camisa de motor com mais de um metro de comprimento, até maquinar uma cabeça de um motor da Central geradora da província, cujo molde diga-se de passagem foi executado na oficina de carpintaria pelo carpinteiro de moldes.

O Mestre da oficina de serralharia era de idade avançada e já corcovado, o nome não me recordo, mas era o pai do À Cau que lhe sucedeu. Um bom manhoso este À Cau, por sinal. E havia aquele torneiro, já velhinho, todo curvado que fazia lembrar um pinheiro crescido nas matas de São Pedro de Muel açoitado pelos ventos inclementes do norte.
Esta oficina estendia-se entre a estrada e o molhe que ladeava a doca e tinha no topo o cabeço onde se fixava o guincho manual de elevação das embarcações na rampa da doca.

A seguir vinha o telheiro da oficina da carpintaria onde se encontrava em construção uma vedeta em madeira de teca e que se destinava à Polícia Marítima.
Perguntei ! Quem fez o projecto?”
“Fui eu” respondeu-me o Eng. N.
“Mas você tem algum curso de construção Naval?” perguntei !.
“É , tirei um curso por correspondência! Já estão duas a navegar. Têm um motor Perkings de 100 cavalos mas andam pouco; è preciso meter-lhes outro motor porque os juncos andam mais do que elas. Os juncos utilizam os velhos motores Gardner retiradas dos autocarros de Hong Kong a que ligam uma caixa inversora feita por umas oficinas chinas que para aí existem”
E quem calculou os hélices? Perguntei.
“Foi a Perkings com os planos que se enviaram para Inglaterra.



Na oficina de carpintaria, empoleirado numa tábua em cima de um cavalete, sujeitando a tábua com os pés e trabalhando um arco de pua, encontrava-se um chinês pequenino e magrizela que mais parecia um macaco do que um homem.
“É o carpinteiro de moldes o À........? Tem uma habilidade e uma cabecinha extraordinárias. É uma jóia rara.”
Estava, vim mais tarde a sabe-lo, a construir o molde da cabeça de um grande motor gerador da MELCO (Electricidade de Macau).

E assim me fui dando conta do que me iria dar dores de cabeça nos próximos quatro anos.
Na Oficina de Caldeiraria fui recebido pelo seu mestre o Chan Meng Tim com um sorriso franco e espontâneo e é de referi-lo, porque foi o único que me dispensou tal recepção, daqui nos viríamos a tornar amigos e foi com grande pesar que tive conhecimento da sua morte em Novembro de 1999.
Nesta oficina onde foram feitas construções metálicas de vulto lá fui encontrar uma calamdra, um saca bocados e um martelo pilão, já todos muito velhinhos, dignos de qualquer museu. Para o lado do rio estendiam-se duas carreiras de construção, uma maior outra mais curta.

Uma velhíssima estação de serviço anexa à oficina de viaturas, com o seu mestre A Com e que incluía também uma oficina de electricidade completavam o conjunto de oficinas.

As instalações administrativas, o meu gabinete e dois outros escritórios encontravam-se em edifício entre o armazém de materiais e outras dependências da Capitania. Existia, para complementar uma pequena sala de desenho.
Para além do Director das Oficinas existiam mais dois ocidentais, um sargento ACM e um marinheiro fogueiro.
O total do pessoal seria de uns 70 homens, no entanto era variável devido a pessoal contratado temporariamente nos arsenais de Hong Kong para garantir obra especializada em certas empreitadas.

Os Mestres das oficinas eram todos chineses, compreendiam pouco o português falavam com frases curtas e era preciso muito tempo para se começar a compreender o que queriam dizer.
Tudo o que se referiu são ingredientes para uma direcção fácil e sem problemas !


Os oficiais, para além do capitão do porto que, devido à sua posição e feitio, se isolava um pouco, eram o oficial de Administração já referido o ten. A. e o Comandante da Polícia marítima, Ten. M. A.

Logo que os afazeres nos permitiam, reuníamo-nos nos balcões do Hotel Riviera, onde tratávamos dos nossos assuntos particulares e oficiais e onde a análise da situação política não deixava de ser feita, tanto mais, que nos poucos dias em que tivemos a companhia do Eng. N. tínhamos as opiniões de um homem declaradamente de esquerda. Não nos esqueçamos que estávamos em 1960! Essa sua posição haveria de lhe trazer alguns dissabores quando depois de uma ida à China que conseguiu fazer, porque nesses tempos as idas à China eram impensáveis, foi ao Palácio do governador Jaime Silvério Marques dizer algumas das suas verdades acompanhadas de gestos largos que obrigaram o senhor a virar as costas para os não ver.. Era na realidade uma pessoa singular mas de que muito gostávamos. Uns dias depois da minha chegada perguntava-se “Alguém viu o N. ?” Não ninguém tinha visto o N. Nem podia, porque o nosso amigo tinha regressado a Lisboa sem se ter despedido de ninguém! Contaram-me do seu falecimento há já bastante tempo. Desapareceu mais uma boa cabeça.

Já que me refiro às pessoas que estiveram no meu tempo em Macau não posso deixar de falar na honestidade e isenção dos camaradas que indiquei atrás. Lembro que o A, como Cte. Da Polícia Marítima, foi aquilo que muitos chamariam de uma honestidade estúpida. Era solteiro e lá porque resolveu viver com uma chinesa tiraram-lhe a casa oficial, mas ele não deixou a chinesa e teve de alugar um apartamento para viver. Como economias, entregou ao pai, no seu regresso, um filho que o pai teria de criar. Recordo que quando um dia lhe apareceu em casa um serviço de chá oferecido por uns chineses exportadores de tabaco, lá teve de ir a pobre da Lia assim julgo se chamava a chinesa, mãe do seu filho, a cavalo num rickchó entregar o presente de volta. Gentes honesta dirão uns, gente estúpida dirão outros.
Talvez por tradição ou por ética, quem lhe sucedeu teve nesse e em todos os aspectos um comportamento irrepreensível, refiro-me ao Cte.. G. da S.



Deixemo-nos de histórias, que muitos dos que por lá passaram recentemente não compreenderiam e lembremos algumas das horas mais felizes e outras.

É evidente que as horas mais felizes que passei em Macau foram as do lançamento à água de novas construções, tanto metálicas como de madeira e outras obras de vulto.
Permito-me lembrar :

- Batelão para transporte de pedra para 140 toneladas.
-Batelão de ferro basculante para transporte de pedra destinado às obras do porto da Ilha da Taipa.
- Batelão para transporte de dragados com portas de abrir pelo fundo.

Recordo uma peripécia acontecida quando do lançamento à água de um dos batelões, julgo que o de transporte de pedra, o capitão do porto fez questão em convidar o Governador da Província para assistir ao bota abaixo, só que o nosso batelão teimou em não descer a carreira, apesar do sebo que foi colocado para que escorregasse. Eu que não gostava nada daquelas cerimónias até fiquei muito satisfeito. No dia seguinte aproveitando a maré, o nosso batelão desceu a carreira com toda a facilidade. Deve-se ter envergonhado com a presença dos importantes lá do sítio.
- Barcaça de desembarque Patane.
Sobre esta última é de referir que apareceu a necessidade de construir uma barcaça de desembarque. Não havia planos. Soube-se que iriam ser construídas uns pequenos estaleiros lá para o lados do Patane umas pequenas lanchas de desembarque para a Indonésia. Conseguiram-se os seus planos. Eu e o desenhador (A Acan) metemos mãos à obra e aumenta daqui e acrescenta dali aprontámos os planos para construir a “Patane”. Dois motores arrefecidos a ar, Deutz, para não termos problemas com os sistemas de refrigeração. O empenho e sabedoria do Chan Meng Tim, uns soldadores recrutados nos estaleiros de Hong Kong e uns meses depois aí vai a nossa barcaça carreira abaixo e...flutuou!

- Substituição dos dois únicos geradores do Aviso de 2ª classe Gonçalves Zarco.
Depois de feito um buraco no costado de BB, e retirados os velhos geradores, foi necessário fechar de novo o buraco, porque o navio foi mandado seguir com urgência para Timor onde a situação com a Indonésia parecia estar a deteriorar-se. Em 15 de Julho de 1963 largou com as caldeiras em mau estado, pavimento e encanamentos em estado muito duvidoso, mas muito bem pintadinho, ainda disfarçava.
Em meados de Janeiro após o regresso a Macau, foi de novo aberto o costado e apesar da pequena folga em relação ao tamanho dos novos geradores, e depois de uma manobra absolutamente impressionante lá entraram os dois geradores para os seus lugares. Foi dos trabalhos mais extraordinários que tive oportunidade de ver levado a cabo pelo pessoal auxiliar, os chamados “loucanes”, que com o auxilio de uns poucos de pequenos aparelhos de força tipo cadernal, conseguiram controlar ao milímetro a entrada dos geradores.
- Na oficina de Serralharia terá de se destacar os trabalhos para a MELCO com substituição de tubos da refrigeração dos motores geradores, grandes reparações nesses motores com execução de camisas e de uma cabeça de motor e ainda:
- A instalação da Central de Geradora da Ilha da Taipa.
- Construção de portas enormes para o antigo hangar do hidroavião e carros para um corso carnavalesco.
A certa altura o Senhor Staney Hó decidiu que seria feito em Macau um corso carnavalesco semelhante ao que se realizava todos os anos no Estoril e aí são chamadas as Oficinas Navais para construir umas portas gigantes para o antigo hangar da aviação naval e os chassis dos carros.
Tudo foi executado na perfeição, os técnicos do gesso começaram a fazer os primeiros bonecos sobre os carros, mas por razões que nunca vim a saber, possivelmente de carácter político o corso nunca se chegou a realizar.
- Da Oficina de Carpintaria é justo referir, para além da construção de três novas vedetas em madeira de teca para a Polícia Marítima, trabalhos de carpintaria de moldes para fundição de peças de que é de destacar o molde da cabeça para um dos motores da MELCO, trabalho a todos os títulos extremamente complexo. E ainda!- Um dos legados mais incómodos do camarada anterior, o “ferry” para Coloane. O Eng. N. desenhou o “ferry”, mas este teria de passar em águas muito baixas e logo o calado não poderia ultrapassar uns 50 ou 60 cms, já não estou bem certo. Dois motores Magirus, as hélices em túnel, uma ponte mesmo quase na proa e depois de tudo isto, governar não era com ele. Como o que não tem remédio remediado está, só melhorou quando se lhe aplicaram uns lemes tipo esparrela..Nunca navegou como deve ser. Mais tarde vi uma fotografia em que apareceu o dito ferry com o nome de “Hoi Heng”, fazendo a ligação Macau- Taipa Coloane.






Ferry para Coloane



Algumas das coisas más que aconteceram.

- Quando verifiquei que já tinham cortado a quilha da ultima das lanchas de madeira, depois de ter concluído que deveria ter mais um metro de comprimento, para obter uma velocidade bastante maior sem aumento de potência para aquela forma de casco. Paciência foi por horas!
- No dia seguinte era dia de pagamento ao pessoal e como as oficinas vivam de duodécimos e sem autonomia administrativa não havia dinheiro suficiente! Foi uma noite de inferno! Logo de manhã dirigi-me a um dos nossos clientes, a MELCO, e pedi que me adiantassem o pagamento de uma obra que tinha em curso nas oficinas. Fizeram-me esse favor e o pessoal foi pago a tempo e horas.
- Recordo ainda um programa de desenvolvimento de fomento ou qualquer coisa parecida que me permitiu renovar algumas máquinas, adquirir uma pequena grua automóvel e algumas viaturas para transporte de carga. Foi uma boa coisa que permitiu um aumento de capacidade laboral. Não consegui porém concluir o que havia planeado, o que me desgostou imenso.

E Mais ?
Tanto, tanto que eu teria para contar, se a memória não me atraiçoasse, mas é como eu costumo dizer “Com o que eu já passei e tenho aprendido, se eu tivesse memória, era um pequeno sábio”
Gonçalves Zarco


O Gonçalves Zarco, navio que me levou na minha viagem de Guarda Marinha até ao Brasil em 1953, viria a ser o meu transporte de regresso para Lisboa, como adiante contarei. Encontrava-se em Macau onde alternava a sua presença com a estadia em Timor.
Chegou comandado pelo Cte. Fragoso de Matos, tendo como imediato o então Cte. Rosa Coutinho e como oficial de máquinas o meu querido amigo, já falecido, Eng. José Rodrigues Cavaco.
O Navio costumava fazer as suas docagens e reparações de maior importância em Hong-Kong nos estaleiros da Hong-Kong & Whampoa Docks em Kowloon
Aconteceu que, no dia 31 de Agosto, encontrando-se em doca seca, foi dado o aviso de aproximação de tufão. Eu estava em serviço naquela colónia britânica e fui visitar o navio.
Tive de desembarcar, pois que o navio estava a preparar-se para sair da doca e rebocado por dois rebocadores ir amarrar à bóia o que, devido ao mau tempo crescente, só conseguiu já passava da meia-noite. .
O Comandante Pedro Fragoso de Matos, em livro escrito mais tarde, como Almirante, sob o título Recordações do Passado, que publicou em 1978, descreveu magistralmente o que foram as horas de luta entre o navio a sua guarnição e os elementos em fúria, durante a passagem do tufão Wanda. Os ventos chegaram a atingir os 120 nós ( cerca de 200 klms/hora). Registaram-se vários acidentes, como a perda de um dos rebocadores que levara o Zarco para a boia que se afundou com os seus 9 tripulantes, a morte de 152 pessoas, o desaparecimento de 21, cerca de 1.000 feridos, e 75.000 pessoas desalojadas. Dos 80 navios de longo curso surtos no porto de Hong-Kong, afundou-se um e 23 encalharam . Mais de 300 embarcações de menor porte afundaram-se e cerca de 400 sofreram avarias. Foi um Tufão e tanto!
Vá se lá saber porque é que todos os tufões têm nomes de mulher !
O Oficial de administração do Zarco, que era o ten. Serra, foi pai nessa noite, já em 1 de Setembro, pois nasceu uma sua filha em Macau. Como não podia deixar de ser, tomou o nome do tufão e assim nasceu uma Vanda.

Passei a noite inteira com o ouvido pegado ao rádio para tentar saber o que se passava com o navio e recordo-me da minha aflição, quando a certa altura, comunicaram que nada sabiam do Gonçalves Zarco. Soube mais tarde que andara a tentar aguentar o mau tempo, navegando dentro do porto e deixaram durante algum tempo de ter comunicações. Felizmente tudo acabou em bem.
O aspecto da Natham Road, perto do Hotel onde estivera hospedado, era na manhã seguinte desolador, com arvores e reclames caídos por todos os lados.
Já assistira a vários tufões durante a minha estadia por aquelas paragens, mas nada comparável a este Wanda.

Em Outubro de 1962, a guarnição do Gonçalves Zarco mudou. O comando foi entregue ao Cte. Malheiro do Vale e o Cte. Sousa e Costa foi o seu imediato. O engenheiro que substituiu o Eng. Cavaco foi o Eng. Quitério de Brito.
Que me recorde faziam ainda parte desta guarnição o médico ten. Metzin Ribeiro, o oficial de administração ten. Aguiar Cardoso, o ten. Telo Carneiro, o ten. Cristovão Moreira, o ten. Carrilho Mateus, o ten. Laurentino, segundo da máquina e o guarda marinha ...falecido anos mais tarde em Angola. Os que não recordo de momento que me perdoem.

O oficial imediato viria a ser substituído por um oficial que passara a maior parte da sua vida na aviação naval, como piloto, o ten. Manuel da Silva.
Depois de mais de seis anos longe de Lisboa, 9.000 milhas, aproximava-se o regresso do velho navio, dada como finda a sua comissão no ultramar. Foi então que se falou na minha substituição antecipada de dois ou três meses para que ficasse no meu lugar o Eng. Do navio que tinha receio que, uma vez chegado a Lisboa, pudesse o lugar ser tomado por outro. A esposa do eng. era natural de Macau e assim estavam muito interessados em que ele lá fizesse uma comissão. A Marinha antevendo nesta rendição um motivo para poupar o dinheiro de uma viagem, pois a minha seria paga pela Província, não hesitou em nomear-me para Chefe de Maquinas em diligência do Zarco, no seu regresso a Lisboa. Refira-se que a instalação propulsora do Zarco estava em muito mau estado na generalidade e as caldeiras em particular.

E foi assim que o Lourenço regressou a Portugal. Felizmente no regresso a família teve mais sorte e viajou para Lisboa num belíssimo paquete inglês o Oriana. Fizeram uma viagem de 18 dias e o Zarco levou só 49 dias e pelo canal do Suez!

O dia do regresso chegou, as lágrimas foram muitas e entre as centenas de pessoas que acorreram ao cais, lá estavam os camaradas, a mulher e a filha a acenar-me.
O navio ostentava uma flâmula de duzentos metros correspondentes aos nove anos que o navio permanecera fora de Lisboa em comissão no Oriente.

Eram 11.50 do dia 28 de Março de 1964, quando o navio largou da ponte cais do porto de Macau e começou a descer o porto interior, mas à passagem pelas Oficinas Navais deparou-se-me a maior surpresa da minha vida, pois que os operários se espalharam ao longo das muralhas enquanto o rebentamento de milhares de panchões quase nos tiravam a visão das gentes que nos quiseram dizer adeus. Tudo ficou na história como a despedida do Zarco, mas eu sabia que a despedida se dirigia a mim em especial, como mais tarde me confirmaram.. Amigos, deixei muitos entre os chineses, menos amigos, terei deixado alguns entre os portugueses e entre os macaenses, mas não é possível agradar a Deus e ao Diabo.

Sobre a viagem espero ainda vir a ter vontade para escrever umas linhas.

E já que cheguei até aqui, deixem-me recordar algo desta viagem.

Para começar há que lembrar que o velho Gonçalves Zarco estaria agora com uns trinta e muitos anos de vida e apesar das intervenções de toda a ordem, já referidas, que sofreu nas Oficinas Navais de Macau, lembro a substituição dos dois grupos electrogénios, e as reparações das caldeiras na Whampoa Docks de Hong Kong, nada conseguia sobrepor-se ao desgaste estrutural do material, principalmente das caldeiras que eram o seu ponto fraco.
Já na travessia de Cape Town para Santos no Brasil, em 1954, na minha viagem de Guarda Marinha, muitos foram os tubos das caldeiras que foram precisos tapar para chegar aonde era de chegar.

Pois foi exactamente o estado de crepitude deste nobre vaso de guerra que ditou o seu regresso a Lisboa naquilo que seria a sua derradeira viagem, depois de 9 anos de ausência. E quem melhor, mais ajustado para assegurar a longa viagem como responsável pelas suas máquinas do que o tal Eng. Lourenço ? Tudo se conjugava. A sua presença em Macau, o interesse do Chefe do serviço de máquinas do navio, camarada que por acaso até casara naquela província para onde já levara a mulher possivelmente com a ideia de ficar nas Oficinas, enquanto o Lourenço haveria de assegurar a viagem do calhambeque para Lisboa onde o esperava a sucata. E foi assim. Foram só 49 dias de viagem bem suados. Suados de toda a forma. O calor que se sentia a bordo naquelas paragens é imaginável. Na Casa das caldeiras só se podia tocar nos corrimões das escadas com luvas calçadas. Quantos graus? Não sei mas não andariam muito longe dos sessenta centígrados. Mas já lá vamos.

Estava quase o sol no zénite, daquele dia 28 de Março quando o NRP Gonçalves Zarco, sob o comando do Capitão de Fragata António Julio Malheiro do Vale, largou da ponte cais n.º 8 do porto interior de Macau.
Esfumaram-se no horizonte as colinas da mui Nobre e Leal Cidade do Nome de Deus de Macau, enquanto a proa do Zarco abria caminho nas amarelas águas do rio das pérolas e já há muito se deixara de ver a Ilha de Coloane quando no horizonte se fez anunciar a proximidade da ilha de Hong Kong.
Amarrámos à boia n.º 2 no porto de Hong Kong pelas cinco horas da tarde e na manhã do dia seguinte fomos atracar ao cais Tamar, lá para os lados do Van Xai. O navio conhecia bem o porto onde aguentara o maior temporal, da sua vida o Tufão Wanda que já referi, quando ainda comandado pelo saudoso Comandante Fragoso de Matos que descreveu magistralmente essa página de glória e aflição do seu Navio.
Após os arranjos administrativos e logísticos que terão durado dois dias, largamos às 13.00 horas tomando o rumo de Singapura, com as máquinas “toda a força avante” a 190 rotações por minuto.

O tempo estava calmo e não fossem as faltas de habitabilidade do barco e o calor húmido da região tudo seria mais agradável.

Do teto do meu camarote baloiçava ao sabor da cadência do balanço do navio uma grade contendo um pequeno aquário com os peixitos tropicais do desmonte do meu aquário comunitário que seria o embrião de um hobby que em 1973 se tornaria numa das mais importantes lojas de aquários do país e que ainda hoje perdura, apesar de por várias vicissitudes, já não me pertencer.

O navio singrava as águas do mar da china numa velocidade que faria inveja a qualquer tartaruga que rumasse ao seu lugar de desova. A velocidade rondaria os 10 ou onze nós !
O ambiente social a bordo não era invejável. Os oficiais metiam-se nos seus camarotes, nas suas horas de folga enquanto não estavam de quarto de navegação à ponte. Como de costume o engenheiro não fazia quartos pois era suposto não perceber nada de navegação nem de outros assuntos que só a nobre classe de marinha tratava por tu. O comandante logicamente estava de quarto as vinte e quatro horas por dia em situação de Stand by, bem como o médico e o engenheiro. Já não me recordo se o oficial de administração fazia quartos, mas ainda um dia destes vou verificar isso.
O Comandante, apesar do seu bom feitio não andava muito satisfeito e muitas vezes atravessava o corredor que separava as portas dos nossos camarotes para vir desabafar. Recordo de ele me interpelar “ Olhe lá o chenhor Lourenço os gajos já o apalparam para entrar nos quartos?”

O Imediato, esse era um castiço. Mais afoito nas asas de uma aeronave, como antigo oficial aviador da Aviação Naval, que como muitos se recordarão foi anexada pela Força Aérea em 1952, adquiriu o estatuto de doente e só saía da toca para ir às formaturas de serviços e para tomar as refeições, e quando aparecia era sempre com os cantos da boca cheios de pó da Gelumina que tomava para tratar a ulcera de estômago.

Havia um guarda marinha, Machado Ramos, que pela sua irreverência se aproximou mais de mim. Os bons chegam-se aos bons! Gostava francamente dele e da sua frontalidade.

Eu por mim, passava a vida a rezar para que as caldeiras não dessem o berro. As perdas de água eram muitas e o vapor escapava-se pelos bucins dos veios e hastes das máquinas. Havia que lançar o vaporizador diariamente 2 ou 3 horas para repor a água perdida o que obrigava a reduzir o andamento do navio para as 135 rotações que deveriam corresponder a uns seis ou sete nós de velocidade. Com o aparecimento de furos no tubular das caldeiras a coisa agravou-se e volta e meia tínhamos de mudar de caldeira para tapar os tubos. Era uma operação titânica, pois havia que apagar a caldeira, identificar o tubo ou tubos rotos, vazar a caldeira, abrir os colectores onde estavam abocardados os tubos rotos e tapa-los com bujões de ferro que eram metidos na boca dos tubos à marretada. Tudo isto num ambiente que deveria rondar os 60 graus centígrados. Trabalho de escravo. Mas lá dizia o outro. “Só quando os navios tiverem o convés de vidro é que se pode ver o que lá vai em baixo! “

E assim foram correndo os dias .
No porto de Singapura, onde chegámos a seis de Abril, pelas oito da manhã, ficámos fundeados no porto Man of War, ao largo, a umas milhas do cais de desembarque mais perto, com o ferro de bombordo e 4 quarteladas de amarra.
A cidade era muito grande e possuía já uns edifícios bastante imponentes, mas tinha um aspecto um pouco desorganizado. Por Singapura passam muitos dos grandes negócios do Oriente. A prosperidade era visível e estava em franco progresso. O tempo que lá estivemos foi muito curto para conhecer esta pequena metrópole.

Esta paragem serviu para nos prepararmos para uma travessia do Indico até Aden .

Como a memória é coisa que já se gastou resolvi ir até ao Arquivo Geral e consultar o Diário de Bordo desde o dia 28 de Março até à ultima folha que se encontra escriturada no dia 16 de Maio de 1964.

Daí extraí alguns pedaços de memória.


Dia 9 de Abril - O navio suspendeu às 20 horas e seguiu para o estreito de Singapura rumo a Aden com tempo de trovoada . Rumo 308 a 180 rotações. Pelas dez e vinte foi avistado o farol de Pisang.
A rota que seguimos é bastante concorrida e assim avistámos navios com muita frequência..
A dez de Abril avistámos, entre outros, um navio patrulha da Marinha da Nova Federação da Malásia.
A 11 de Abril , navegando ao largo de ATJEH ao norte de Sumatra, foram avistados vários navios de guerra e um transporte de tropas inglês. O tempo estava calmo, trovejava. Um forte aguaceiro que caiu sobre o navio permitiu que muita gente aproveitasse para tomar banho e refrescar-se.
A 12 de Abril obtivemos no radar o eco das ilhas de Bengala Passage. Avistou-se bastante navegação.

O dia 14 foi marcado por um caso insólito. O médico, Dr. Messing Ribeiro, logo de manhã comunicou ao comandante que havia um grumete que estava com uma apendicite aguda e tinha de ser operado. Aventou-se a possibilidade de desembarcar o homem no porto mais perto, mas toda a costa nesse momento nos era hostil depois de termos perdido as nossas posições na Índia e não termos relações com a Indonésia. O Médico dispunha-se a operar o doente, mas o comandante estava um pouco receoso. Pesados os prós e os contras lá foi decidido operar o marinheiro.
Foi preparada a enfermaria, arranjou-se um voluntário para limpar o suor da testa do médico para não cair dentro da barriga do homem e assim se fez. O que é certo é que passados poucos dias o nosso grumete já estava sentado à porta da enfermaria.

Para passar o tempo, enquanto o velho aviso se arrastava a passo de caracol singrando as águas do Oceano Indico tão apetecido dos marinheiros de 500, resolvi agrupar alguns marinheiros e todas as manhãs lá estávamos numa sessão de ginástica no castelo da proa. Não houve muitos aderentes, mas os que começaram mantiveram-se enquanto a madurice durou.

Dia 15 . Foi avistada terra logo de manhã. Deveria ser a ilha de Ceilão e o farol de DRA HEAD. Os relógios atrasaram mais uma hora, pela quarta vez. Tivemos uma avaria numa das turbinas que nos obrigou a andar a boiar durante duas horas.

Dia 17.- pelas 13.30 avistou-se o paquete inglês “PO ORIANA”, pela alheta de EB (estibordo). Manobrou-se de forma a aproximar dele. Distância mínima 2,4 milhas. Não foi possível passar uma mensagem aos passageiros portugueses que nele viajavam procedentes de Macau. Desapareceu pela amura de EB cerca das 15.30 Neste belo transatlântico regressavam a Lisboa, onde chegaram uns 15 dias depois, a minha mulher e a minha filha.
Enquanto o Oriana desaparecia no horizonte a fazer os seus mais de vinte nós, íamos fazendo uns 8 ou nove nós. Nessa mesma manhã tivemos de acender a caldeira nº 1, porque a nº2 teve de se apagar já com uns 15 tubos rotos. Parecia mais um passador do que uma caldeira. Passei 15 anos da minha vida a bordo, no mar, mas nunca entrei num Navio Mercante.

Dia 19 – De tarde baixou-se as rotações da Máquina para permitir fazer água destilada com o vaporizador, para compensar as perdas de água devido às roturas e outras pequenas fugas. Voltou às rotações normais depois das onze da noite.

Dia 20 – O susto foi grande quando se soube que o vaporizador tinha avariado. Era fundamental para manter a instalação das máquinas a funcionar. Sem ele não seria possível fazer água destilada para alimentar as caldeiras.
A bomba tripla do vaporizador foi desmontada e trazida para o convés, onde foi toda aberta. Encontrou-se um pequeno pedaço de zinco na saída da extracção de sais. Depois de várias horas de trabalho ficou pronto à tardinha! Não havia água doce para o banho. Tomávamos banho com água salgada e um sabonete especial. Água doce só para lavar a cara e os dentes. No dia seguinte o vaporizador quase não parou, para compensar as perdas.

Dia 22 – Alcançamos a entrada do Golfo de Aden. Mesmo pela manhã o calor e a humidade eram muito elevadas. Muitos elementos da guarnição dormiam espanhados pelos cantos do convés para tentarem descansar alguma coisa. São as maravilhas da vida no mar.

Dia 24 – Fundeou e amarrou pela popa a uma bóia em Aden eram uma e cinquenta da mnhã.
O cônsul de Portugal ofereceu um cocktail aos oficiais do navio e convidou alguns importantes lá da terra. Não me posso esquecer de um sultão muito importante que no entanto vinha muito mal vestido, com um turbante que parecia um pano do pó, uns sapatos ocidentais, mas sem meias, no entanto tinha o seu Rolls Royce, uns tantos Mercedes, dois aviões uma mulher e várias concubinas. Era um Senhor e fazia questão de o demonstrar com o seu ar altivo e a sua barbicha empinada. Outros convidados mostraram-se bastante mais simpáticos.
No segundo dia de estadia, organizou-se um almoço a bordo e entre os convidados lá veio o nosso sultão. Além do cônsul e do almirante inglês vieram também vários oficiais ingleses, que fizeram honras ao nosso bacalhau "à Braz" e ao vinho verde fresquinho que correu com muito agrado pelas goelas abaixo.
O jogo de futebol que organizámos com os ingleses foi ganho pela equipa do Zarco.

Entretanto o pessoal da máquina continuava a trabalhar no duro para reparar as caldeiras e um problema nas redutoras.

Enquanto permanecemos no porto todos os dias houve almoços a bordo, alguns bastante agradáveis. Veio fundear no porto um porta aviões americano com a sua escolta de 4 “destroyers”.

Dia 28 de Abril – Foi um dia algo especial porque conseguimos ultrapassar um navo mercante. Era grego e ia a 9 nós contra os nossos 10.. Avistámos várias ilhas espalhadas pelo Mar Vermelho.
Dia 29 – Soubemos pela Press Lusitana que Salazar fazia 75 de idade e 36 de governo. Ainda deu para fazer um bocado de humor na Câmara dos oficiais.




O mar piorou francamente com vento e vaga de proa, o que nos levou a perder o comboio de navios que estava previsto para a passagem do Canal do Suez.




Tínhamos levado cinco dias para galgar o Mar Vermelho que no mapa parece ser bastante pequeno. Apanhamos sempre mar e vento de proa. Velho e em mau estado como estava o navio obrigava-nos a inspecções constantes aos entre fundos do navio. Não fosse alguma chapa ceder. Uma fragata inglesa que também ia para a sucata, sai dois dias depois de nós de Aden e chegou praticamente ao mesmo tempo ao Suez.
O bom tempo e os banhos de sol tinham ficado para trás e os ca+potes saíram dos armários.

Fundeámos no Suez no dia 3 de Maio às 15.20 h.

Tivemos que esperar pelo próximo comboio, fundeados no Suez e aproveitamos para tentar, mais uma vez reparar a caldeira nº 2 que já estava com 10 tubos rotos. Depois de apagada verificou-se que afinal eram 22 tubos e não conseguimos veda-los todos pelo que teríamos de ir para o Mediterrâneo só com a caldeira nº1 e umas rezas à Nossa senhora de Fátima. Para já era preciso alcançar Malta.

Tivemos problemas com o pagamento da passagem do Canal pois não aceitaram cheque do Banco de Portugal e o que nos valeu foi o cônsul de Espanha. 800 libras foi o preço da passagem. Mesmo assim quiseram ver o Diário de Bordo, pois que o navio estava na lista negra porque não tínhamos relações com o Egipto e queriam ter a certeza de que não tínhamos estado em Israel. A ultima vez que o navio por ali passara foi em 1955.

Dia 4 – às quatro e meia da manhã o comboio começou a entrar no canal conduzido por pilotos muito experimentados. Nós suspendemos por volta das dez e fomos fundear numa espécie de bacia o Great Beater Lake, esperando que passasse o comboio que vinha em sentido contrário. A Bombordo a margem do canal estava cheia de gente a festejar uma espécie de dia da primavera, fazendo pic nics. Havia imensos jardins e palmeiras. Em contraste a Estibordo só se via areia e nada mais.
Por volta das cinco da tarde passamos por Ismaília onde avistamos uma bela praia cheia de gente. A noite caiu e os navios com os seus faróis acesos faziam lembrar uma autoestrada. Às dez e meia da noite largamos o piloto à saída do canal e enfrentámos o Mediterrâneo com o Farol de PotSaid pelo azimute 182, rumo a Malta.

Dia 5 – a navegar no Mediterrâneo com um balanço de parafuso muito desagradável e suspensos na resistência da caldeira n.º 1.

Dia 7 - O vento rodou e ficámos com balanço bombordo, estibordo que nos faz andar de pernas abertas para não andarmos aos trambulhões.

Dia 8 de Maio – atracámos no porto de La Valleta

La Valleta é uma verdadeira fortaleza no meio do mar e onde se terão dado valentes combates no tempo dos cruzados e mesmo mais.
Nessa altura ainda era uma colónia inglesa, mas estava em progresso a sua independência , mas sem problemas de maior. Toda a ilha é história e aí se podem encontrar desde catacumbas dos romanos a templos construídos há mais de dois mil anos. A cidade de Medina fundada pelos cavaleiros de malta lá estava a testemunhar a história.

A sua localização e todo os testemunhos históricas torna Malta num destino turístico muito interessante, tanto mais que os malteses são um povo simpático e hospitaleiro.

Na tarde do dia 9 de Maio deixávamos para trás o porto de Malta e dirigimo-nos para oeste em demanda do estreito da Gibraltar, porta que nos haveria de deixar entrar no nosso Oceano Atlântico e virando a esquina entrar em nossa casa.
De dia 10 para 11 tivemos uma noite de balanço bastante forte que mal nos deixava descançar o corpo.

Dia 11 - O tempo começou a melhorar, ainda que se conservasse bastante cinzento e avistámos uma ilha italiana a Pantellaria, com a sua cultura de vinhas em socalcos.

Dia 13 - O navio foi invadido por uma nuvem de grilos, negros gordos e luzidios que se meteram em tudo o que é sitio e passados vários dias ainda por lá grilavam a bom grilar. Era uma sinfonia incrível.
Alguém dizia por graça que íamos entrar em Lisboa com orquestra e tudo.

Dia 14 - Chegamo-nos a terras de Espanha, avistámos Málaga e rumámos ao Estreito de Gibraltar. Entretanto nas cobertas continuava a caça aos grilos que não deixavam dormir ninguém.

Passamos Gibraltar e fomos mimoseados com um mar bastante agitado.

Na madrugada do dia 15 já avistáramos os relâmpagos do Farol de Santa Maria situado na barra Olhão – Faro. Alguém se encarregou de pedir para terra umas sardinhas, pimentos e alfaces.

Recebemos um rádio do nosso Chefe do Estado Maior que foi lido para todo o navio em que elogiava o cumprimento da missão do navio apesar do seu estado de velhice e saudava toda a guarnição.

Dia 16. de Maio de 1964 – Ninguém dormia a bordo. À meia noite passamos ao largo do Cabo de Sines.
Tocou à faina às 9 horas.
Tomou rebocadores e atracou na ponte 3 da Base Naval do Alfeite às 9.30 h.
Assim reza o Diário Náutico.


O que no diário náutico não consta, são os sentimentos desencontrados e múltiplos que se apossaram de todos quantos acabavam de chegar de volta à sua Terra.

Naquele tempo ainda existia a PATRIA AMADA. Coisa obsoleta, não é?

É




Com certeza uma das maravilhas do Mundo esta entrada no rio Tejo, para aqueles que ao serviço da Pátria saem a barra e por lá andam meses e meses, anos e anos.
Tudo para além da beleza natural deste local impar.

O Farol do Bugio que outrora fora bastião forte de defesa da barra, continua a guardar a segurança da entrada do Tejo de forma que os navios não enchurrarem nos traiçoeiros bancos de areia que ladeiam para sul a entrada da Barra.


Poucos saberão das verdadeiras epopeias que constituía, nos Invernos de mau tempo a rendição dos faroleiros que para manterem o farol em funcionamento, viviam no meio do mar durante 15 dias e por vezes mais, quando havia que esperar por uma aberta no tempo para que o pequeno rebocador da Direcção de Faróis pudesse aproximar-se do pequeno cais do Farol do Bugio. Acompanhei muitas vezes esta operação empunhando os binóculos da janela do meu gabinete na Direcção de Faróis em Paço De Arcos.

Do lado Norte lá estava altaneiro e vetusto o Forte de S. Julião da Barra. Sempre que por ali passava teria de me lembrar de uma entrada da Barra no contra-torpedeiro Dão debaixo de temporal desfeito, no dia 17 de Fevereiro de 1957. Foi por milagre e pela destreza do seu comandante que o navio não se espatifou contra o Forte, tal era o mau tempo que se fazia sentir.

Nós "entremos" a barra e "alimentemos" a nossa visão com essa paisagem extraordinária que ladeia o rio nas suas margens.
Não, ainda não havia ponte e os pequenos cacilheiros enchiam de vida a travessia Cacilhas - Cais das Colunas. Nesse tempo o estuário do Tejo fervilhava de movimento. Os cais de atracação estavam cheios e os navios mercantes que aí não tinham lugar fundeavam no Mar da Palha onde fragatas e batelões que se lhe atracavam assistiam na descarga dos seus porões. Pois é que contentores também era coisa nunca vista naqueles tempos.
Mas que beleza, ver todas essas fragatas de velas enfunadas pelo vento rasgarem as águas nem, sempre calmas, do Tejo.

Atracámos no Cais no Alfeite, mas só nos esperava a família. Nem um oficial em representação do Chefe do Estado-Maior. Parece que o nosso orgulho traduzido na flâmula de 200 metros que o navio ostentava, morria ali. Não é que não estivéssemos já acostumados, mas tínhamos sempre a esperança de sermos recebidos condignamente. Nos Portos estrangeiros sempre tínhamos honras à chegada, com salva de tiros e tudo, mas em casa … nada. Agora, a TV vai a todas.

O termos conseguido chegar sãos e salvos, já era uma verdadeira benesse dos Deuses do Olimpo.
O Navio, esse, tinha alcançado a sua última morada, qual elefante moribundo!



LX. 07-03-11

JAL